São Paulo, quarta-feira, 6 de março de 1996
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TCU quer concorrência sem concorrentes

SAULO RAMOS

Continuando atento às barbaridades jurídicas da República, algo muito estranho está acontecendo no Tribunal de Contas da União, que não pode passar sem a devida observação antes que o desastre se transforme em mais um escândalo de lesão irreparável ao direito constitucional e, talvez, à moralidade pública, sempre atingida quando as instituições são usadas num taxo de fabricar goiabada.
Está, no programa de privatização, previsto o arrendamento, por particulares, dos bens da Rede Ferroviária Federal, assim como a transferência da respectiva concessão. Dois grupos parecem interessados em participar do leilão. O Noel Group, norte-americano, apoiado pelos Chemical Bank e Bank of America.
Outro o Grupo Empresarial da Vale do Rio Doce, a maior transportadora de minério de ferro na face desse nosso planeta azul. Concorreria por uma de suas empresas submetidas ao direito privado, não apenas pelo que está escrito no art. 173, parágrafo 1º da Constituição, mas porque as empresas, controladas por estatais e não criadas por lei, não são sociedades de economia mista e, por isto, não podem ser consideradas estatais, segundo a unanimidade da doutrina e da maior autoridade institucional na interpretação da Constituição, que é o Supremo Tribunal Federal.
O Tribunal de Contas da União andou baixando resoluções interpretativas da Constituição (o Supremo Tribunal Federal que se cuide...), pelas quais ficou entendido que as empresas estatais, para participarem da compra das outras, que vão ser privatizadas, necessitam de autorização legislativa, segundo o disposto no art. 37, inciso XX, da Carta da República. Não se deu a menor bola à lei nº 8.031/90 (estatuto das privatizações), em que o Legislativo já outorgou essa autorização e, ao meu ver, sob exagerada amplitude. Até aí vai, tudo mais ou menos bem. São sérios senhores brincando de direito constitucional. Afinal um Tribunal de Contas pode fazer de conta muitas coisas.
Agora pretende-se ir longe demais, ao impedir que uma empresa privada, controlada pela Vale do Rio Doce, participe da licitação da RFFSA, deixando convenientemente o grupo americano nadar de braçadas numa concorrência sem concorrentes.
Para isto foi aberto um processo "em face de notícias veiculadas pela imprensa", segundo consta expressamente de voto do ministro Carlos Átila, com a finalidade de proibir a participação de empresa, considerada estatal, nos processos de privatização, "inclusive e especificamente no caso dos ramais da RFFSA". No entendimento "empresa considerada estatal" entra tudo que tiver ligação indireta com a União. A Vale do Rio Doce, como tantas outras estatais, criou empresas chamadas subsidiárias, que a lei própria (Lei das S.A.) qualifica de controladas, que, se não criadas por lei, são companhias privadas de direito comum.
Não podem ser consideradas sociedade de economia mista, nem estatal, mesmo na Conchinchina. Estão imunes à autorização legislativa do inciso XX, do art. 37 da Constituição, que somente incide nas mamães, criadas por ato legislativo, jamais nas companhias filhas, submetidas ao direito privado e reguladas exclusivamente pela lei das sociedades por ações (par. 2º, art. 235, da Lei 6.404/76.
Se outra lei não pode interferir na atividade e liberdade destas empresas, como, por meoio de resoluções, a Corte de Contas pretende fazê-lo? Claro está que passou das contas.
Essa nova forma de tomada do poder constitui fato, por todos os aspectos, gravíssimo, pois o TCU, com tal providência, desrespeita várias normas do Legislativo, usurpa, no âmbito do Executivo, a competência da Advocacia-Geral da União e, na esfera institucional, furta atribuição constitucional do STF.
É muita coisa para uma instituição que deve apenas -já não é pouco- tomar conta do que se faz com o dinheiro público e, em matéria de legalidade, não pode passar da apreciação dos atos de admissão de pessoal -Constituição, art. 71, III- e para fins de registro.
Nesta investida do TCU, em processo provocado por notícia de imprensa, contra a participação não da Vale do Rio Doce, mas de uma de suas empresas controladas, resta claramente demonstrado que a Corte de Contas está sendo acionada por sua Unidade Técnica, com base em recortes de jornais, sem o devido cuidado e a seriedade que a questão requer.
Ilustres homens públicos como Adhemar Guizi, Homero Santos, Paulo Affonso, Marcos Villaça, Guimarães Souto, Fernando Gonçalves, Bento Bugarin, Iran Saraiva certa mente não foram advertidos sobre o grave equívoco, pois não permitiriam a transformação daquela corte numa espécie de tribunal constitucional clandestino, mas que ousa mandar dizer quem pode ou quem não pode participar de determinadas licitações, para alegria, no caso, dos americanos convenientemente premiados em licitação sem licitantes, graças à interpretação errada por um órgão leigo de um inciso inaplicável da Constituição.
E mais: a ordem é dada pelo TCU diretamente à entidade do Executivo, o BNDES, sob pretexto de interpretação constitucional normativa, quando a Constituição reserva ao tribunal somente o dever de representação ao Poder competente, se apurada irregularidade (CF. art. 71, XI).
Fernando Henrique está sendo engenhosamente deposto por este Tribunal, que também não é competente para o impeachment. Deus seja louvado! Que fim deram ao Advogado-Geral da União?

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