São Paulo, quinta-feira, 7 de março de 1996
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Contra-senso e insensibilidade

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Está em cartaz o filme "Razão e Sensibilidade" ("Sense and Sensibility") que concorre ao Oscar de melhor atriz e melhor roteiro.
Já a performance do governo na atual crise bancária lembra mais um filme americano, tipo B, de roteiro inverossímil e elenco imbatível de canastrões.
Não é fácil lembrar outra ocasião em que governantes e "autoridades" monetárias tenham sustentado um discurso tão incoerente.
Parece evidente, a esta altura, que está em curso uma manobra para jogar o grosso da responsabilidade sobre a fiscalização do Banco Central (BC), isentando, sempre que possível, governo e diretoria do BC de qualquer responsabilidade pelos escândalos.
Por ter reconhecido as falhas e deficiências da estrutura de fiscalização do BC, o depoimento de anteontem do presidente do banco no Congresso foi considerado "honesto" e "franco" por um importante jornal...
É o de sempre. A corda estourando do lado mais fraco, com a conivência de uma parte dos meios de comunicação.
É claro que os últimos episódios, e em especial a revelação da fraude monumental na contabilidade do Banco Nacional, não deixam mais sombra de dúvida quanto à existência de graves deficiências nas atividades de fiscalização do BC.
Faltam fiscais, os salários são insuficientes, os procedimentos de controle são inadequados etc.
O governo e a direção do BC agora reconhecem esses problemas e estão, inclusive, ansiosos para enfatizá-los.
Mas é preciso não esquecer o seguinte: são tantas, tão antigas e de tal porte as irregularidades e as dificuldades do sistema financeiro no Brasil que mesmo a deficiente estrutura de fiscalização do BC vinha detectando e reportando, nos últimos anos, um grande número de problemas desse tipo sem que isso resultasse em providências adequadas e em tempo oportuno por parte dos escalões mais altos do BC e do governo.
Não cabe dar razão ao ex-secretário da Receita Federal, Osiris Lopes Filho, que, em artigo na Folha no domingo passado, ressaltou que "os funcionários do BC, trabalhando em ambientes restritivos, com dificuldades, cumprem as suas atribuições. Os escalões superiores é que estão contaminados pela acomodação e cumplicidade com as irregularidades"?
Nos últimos meses, a imprensa vem publicando grande número de matérias, alimentadas muitas vezes por vazamentos oriundos do funcionalismo do BC, e não desmentidas pelo governo, que apontam para a existência de alertas e documentos da fiscalização do BC relativos a irregularidades e problemas financeiros em diversas instituições.
A ênfase na ineficiência da fiscalização não serviria ao propósito de desviar a atenção da opinião pública, evitando que se responsabilize a direção do BC e o governo?
De qualquer modo, se as deficiências da fiscalização são tão graves -escandalosamente graves, a julgar pela dimensão da fraude no Nacional durante muitos anos-, como explicar que as diretorias do BC tenham ficado tanto tempo sem tomar medidas para modernizá-la e fortalecê-la?
Em entrevista concedida anteontem, em que procurou negar a necessidade de uma Comissão Parlamentar de Inquérito a respeito do Banco Central e de suas relações com o sistema financeiro, Fernando Henrique Cardoso afirmou: "Estamos demonstrando ao país aquilo que herdei (...) Herdei uma enorme desorganização. Cabe a mim limpar a herança do passado."
Bravo! Mas não se pode perder de vista que há mais de três anos o BC vem sendo presidido, sem qualquer interrupção, por pessoas ligadas ao atual governo e da sua confiança.
Gustavo Loyola foi nomeado presidente do BC em fins de 1992, no início do governo Itamar, tendo sido substituído por Paulo Ximenes, atual presidente do Banco do Brasil.
Este, por sua vez, foi substituído por Pedro Malan, atual ministro da Fazenda, que deu lugar a Pérsio Arida. Desde junho de 1995, o BC está novamente sob o comando de Loyola.
Recorde-se também que o BC está subordinado ao Ministério da Fazenda, comandado pelo próprio Fernando Henrique por cerca de um ano, em 1993/94.
O que foi feito durante todos esses anos para remediar as graves deficiências da fiscalização do BC?
Não se trata apenas de explicar o que o BC está fazendo ou pretende fazer nessa área, agora que vieram a público as gigantescas falcatruas em alguns dos principais bancos do país, agora que os contribuintes estão sendo convocados a pagar a conta multibilionária associada à preservação do sistema financeiro.
O que precisa ser esclarecido, entre muitas outras coisas, é se a omissão ou até a conivência das diretorias recentes do BC, todas integradas por pessoas da confiança do atual governo, não foi uma das causas dos imensos problemas acumulados na área bancária nos últimos anos.
Razões para uma CPI existem de sobra. Sem ela, essas dúvidas não serão dirimidas e não será possível identificar as brechas do sistema, condição indispensável para uma reforma adequada e duradoura do BC e da estrutura bancária.
Afirma-se que a CPI ameaçaria a estabilidade do sistema financeiro e atrasaria as "reformas fundamentais". Mas isso é mais pretexto que argumento.
O que ameaça a estabilidade e o desenvolvimento da economia são os constantes sobressaltos e surpresas decorrentes dos desajustes do sistema financeiro.

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