São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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Arquitetura para educar

NABIL GEORGES BONDUKI

A educação é uma das poucas prioridades consensuais, ao menos no discurso, de todas as forças políticas do país. Seja como fator de formação de mão-de-obra qualificada, necessária à inserção do Brasil no mercado globalizado, seja como modo de enfrentar o "apartheid" social que marginaliza parcelas crescentes de trabalhadores, a educação é dos poucos direitos sociais ainda inquestionáveis.
A leitura desta obra da arquiteta Mayumi Watanabe Souza Lima é fonte indispensável para o aprofundamento da relação entre educação, arquitetura e meio ambiente. O livro é uma edição póstuma, coordenada pelo arquiteto Sérgio de Souza Lima. Traz textos, projetos e propostas dos 30 anos da atuação da autora como arquiteta e professora, regida por uma rigorosa ética do trabalho, visando à construção de espaços educativos de qualidade e à formação de arquitetos "capazes de responder às efetivas demandas sociais".
Como colaboradora, ainda jovem, de Artigas, Lina Bardi, Niemeyer e João Filgueiras Lima, professora da Universidade de Brasília em sua fase histórica (1961-4) e de várias outras escolas de arquitetura de São Paulo, Mayumi sempre se dedicou a formar homens e profissionais para uma nova sociedade. Trabalhando com a construção complexos escolares e universitários, quase sempre em órgãos públicos, nunca se deixou seduzir pelo poder. Seus textos mostram uma postura crítica e militante, dissonante frente à importância de seus cargos públicos, como, entre outros, o de superintendente (1975-9 e 1983-4) de planejamento da Conesp (Companhia de Construções Escolares do Estado de São Paulo). Mayumi critica, por exemplo, a maneira como o Estado tratou, desde os anos 50, da implantação do ensino público universal. Até então, "a criação e a construção de escolas era a garantia do status político e social das elites. O seu tamanho, imponência e arquitetura e a expansão da rede não se relacionavam diretamente com a necessidade de aumento da demanda". Qualidade do ensino e da arquitetura escolar, embora valores incontestes, exprimiam, de fato, uma ação elitista.
A expansão da rede escolar passou a ser responsabilidade do Estado, que enfrentou o desafio priorizando a redução de custos e outros critérios dúbios. As autoridades oficiais, supondo que "as construções escolares eram depredadas porque seus padrões seriam ostentatórios frente às edificações dos bairros (...) (e) agrediria(m) a população, concluíram que os prédios escolares deveriam ser muito simples, empregando materiais similares aos utilizados nas habitações dos moradores e não se indagando sobre as razões da baixa qualidade dessas construções".
Mayumi pensava que "o respeito aos valores culturais da população deveria ser uma das considerações do projeto", mas, neste caso, o argumento oficial servia à redução da qualidade da arquitetura escolar. Segundo ela, "a simplicidade transformou-se na padronização e primarização dos espaços, interpretadas as necessidades educativas das crianças das camadas populares, segundo a visão reducionista e hierárquica das camadas dirigentes. Homogeneizava-se a clientela carente e as escolas sofreram cortes nos ambientes, nas instalações e nos materiais". Deste modo, a educação reduz-se a uma relação aritmética de volume de crianças distribuídas numa área mínima; uniformiza-se e massifica-se a construção de escolas de baixa qualidade.
Contra tal visão, os textos defendem a idéia de que uma efetiva democratização da educação, não se resume à questão das aulas formais, mas requer mais espaço e de melhor qualidade. Manifestam seu inconformismo com a diferença da educação oferecida às classes sociais: "Em uma, a formação de uma mão de obra, semipreparada, submissa, com rudimentos de aritmética, ortografia e leitura; em outra, a formação das elites, incluindo, aí, as línguas, as matemáticas, as artes, as ciências e até o direito". Para a autora, a arquitetura da escola reflete, externa e internamente, esta concepção discriminatória.
O trabalho da arquiteta, em São Paulo, na gestão Erundina, relatado na parte 3 do livro, foi crucial nessa trajetória. Mayumi dirigiu a experiência (hoje abandonada) da produção de elementos pré-fabricados para equipamentos sociais urbanos, que possibilitou a montagem de escolas públicas compatíveis com as necessidades do país. Desdobra-se, aqui, a colaboração anterior de Mayumi com o arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé), que desenvolveu, em Salvador, Rio de Janeiro e Brasília, um sistema para a construção de pré-fabricados.
Assim, foram projetadas e construídas inúmeras escolas, como as melhores que o setor privado faz para a classe média, incluindo biblioteca, laboratório, sala de artes plásticas e de informática, e o equipamento das áreas externas com instrumentos lúdicos para a melhoria da formação da criança. Pôs-se em marcha um processo em que se compatibilizava a produção em série de componentes leves e a elaboração de projetos flexíveis, permitindo a edificação massiva de um conjunto diversificado de edifícios. Superou-se, deste modo, o dilema qualidade versus quantidade, que marca os serviços públicos, quase sempre em detrimento da primeira.
Este trabalho recoloca, pois, uma velha, mas ainda atual, questão posta pelos pioneiros do movimento moderno: a importância de se atender com qualidade às reais necessidades de espaço de toda a sociedade, rompendo a subserviência da arquitetura a uma parcela privilegiada.
Pensando que os valores estéticos deveriam pertencer a todos, Mayumi optou decididamente pela produção do espaço público, rejeitando, sempre que possível, encomendas privadas.
Seu principal cliente foi o Estado e não obstante as frustrações aí acumuladas, nunca deixou de trabalhar no âmbito público, atuando também ao lado de movimentos sociais e ONGs, como a Fundação Abrinq. Segundo acreditava, "a dimensão e a complexidade das transformações necessárias não podem constituir pretextos para que mudanças imediatas não sejam realizadas". Tinha razão: uma das obras realizadas por ela, em 1991, para a prefeitura de São Paulo, foi o Espaço Vivencial de Trânsito para a educação de crianças para o trânsito. Infelizmente, o motoqueiro que a vitimou, num atropelamento fatal, não frequentara esta escola...

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