São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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As verdades de Leonilson

NELSON AGUILAR

São Tantas as Verdades" aumenta a bibliografia ainda incipiente dos movimentos da arte brasileira contemporânea. Primeiro fruto editorial do Projeto Leonilson, a entidade já se torna paradigmática para iniciativas homólogas. Os recursos para a viabilização provieram do Serviço Social da Indústria (Sesi). Ventila-se que o próximo contemplado é Mira Schendel, o que atestaria a alta qualidade do encontro entre empresariado e cultura.
Nada é mais prejudicial ao artista desaparecido que ficar entregue ao capricho de familiares sem o filtro de uma instituição capaz de zelar serenamente pela irradiação do acervo sob sua responsabilidade. Quanto mais tempo decorrer de seu falecimento, mais elos essenciais à compreensão da obra se dissolvem, a lenda se sobrepõe à realidade, herdeiros se atrevem a conduzir o destino do ascendente.
Caso aflitivo é o de Lygia Clark, que até hoje não possui os textos artísticos e terapêuticos publicados, a produção repertoriada. Com o intuito de apresentar a obra na 22ª Bienal Internacional de São Paulo, tive que abrir mão de pontos de vista curatoriais inovadores desenvolvidos por Suely Rolnik para contentar representantes do espólio. O exemplo mais bem-sucedido no setor reside no Museu Lasar Segall, que reúne tudo o que um ambiente cultural sensível e aberto pode oferecer à memória do artista.
O ensaio central do catálogo, de autoria de Lisette Lagnado, concentra-se sobre o tema da ambiguidade vida/obra, vida/morte, homoerotismo e considera a produção de Leonilson epistolário, de maneira a privilegiar as palavras e símbolos que pontuam os diferentes suportes como chaves para o desvendamento do homem e do artista. Uma série de entrevistas realizadas nos últimos meses de vida resenha as etapas do duelo perdido de antemão com a doença. O prefácio confessional de Adriano Pedrosa, as considerações psicossociais entre arte e Aids de Ivo Mesquita e o cuidadoso aparelho de cronologia, bibliografia e lista de exposições construído por Regina Teixeira de Barros completam a empreitada. Fica o voto para que patrocinadores e historiadores de arte prestigiem também os artistas vivos.
A alegação de que a fonte formal de Leonilson procede da transvanguarda inquieta a ensaísta. Indagação logo formulada, logo descartada, o movimento é considerado "modismo", a filiação "reducionista", o fenômeno "vago". Admitir a ligação equivale a "aceitar que sua obra tenha sucumbido às influências internacionais", passando por cima da evidência de que "está de forma eminente fundada sobre uma experiência individual" (pág. 28).
O estudo passa sumariamente pela fase inicial, privilegia os bordados, ex-votos contra a finitude, que se transformam em "parte total" no último período. O artista toma imagens de alguns artífices da transvanguarda (Paladino, Clemente, especialmente Julião Sarmento), a tal ponto que o codificador do movimento, o crítico italiano Achille Bonito Oliva, seu conhecido desde 1981, o convida para a mostra "Transvanguarda e Culturas Nacionais" realizada no MAM/RJ em 1986. Os bordados exacerbam esta adesão pela própria paginação de cada peça que inverte as cotas de vazio e de cheio e pela descentralização da figura.
A pergunta pela relação entre o artista e a transvanguarda pode se colocar de outra maneira: como Leonilson foi capaz de sentir e declinar com tanta felicidade uma poética oriunda de outros centros. Em primeiro lugar, captou o subjacente à estratégia cultural de Oliva, qual seja, o prolongamento das propostas anárquicas do Fluxus e da Internacional Situacionista. Depois, atingiu uma imediatividade pictural inédita à linguagem artística aceita até então.
O movimento Fluxus, vigente desde 1962 nos Estados Unidos, questiona os compartimentos estanques da arte, promovendo a interdisciplinariedade das diversas sensorialidades artísticas. O compositor John Cage constituiu a referência máxima pela porosidade com que articulou em suas manifestações música, poesia, dança e performance. O artista sul-coreano Nam June Paik conquistou para si o papel do demiurgo, fazendo jus às expectativas de Marshall McLuhan da imagem televisiva como o mosaico totalizante da sensorialidade. Para os situacionistas, a obra de arte é apenas a parte visível de uma série de gestos muito mais abrangentes que visa romper o imobilismo da vida cotidiana mediante ações conjugadas, levando em conta o potencial revolucionário dos grandes centros urbanos. Tanto um quanto outro movimento elegem o desvio de elementos estéticos pré-fabricados (leia-se "readymade") em prol da construção integral de um meio em ligação dinâmica com experiências de comportamento.
Neste ponto, justificam-se declarações aparentemente despropositais de Leonilson como a de sua filiação a artistas com os quais não teve contato direto com a obra (Hélio Oiticica ou Lygia Clark), sua admiração pela arte dos "shakers", colonos estabelecidos nos Estados Unidos desde o final do século 18, revelando veleidades de identificação com o socialismo utópico, quando seu trabalho perderia a conotação marginal e se integraria num espaço-tempo messiânico.
A produção do artista ganha, se comparada às categorias deleuzianas de espaço liso e estriado (tributárias do fenomenólogo Erwin Straus via Henri Maldiney). O liso caracteriza os nômades e o estriado, os sedentários. O tecido, conjugação de trama e urdidura, à maneira de latitudes e longitudes, pelo cuidado de esquadrinhar o espaço, reproduz a estrutura das sociedades estáveis. Já o bordado escapa desta determinação, reaparecendo aqui e ali no universo têxtil como sinais acidentais e esparsos que abrigam o casual. O feltro feito por fibras prensadas funciona como antitecido, desembaraçando-se do comprimento do tear em busca da liberdade direcional, invenção dos nômades turco-mongóis. Seu emprego por Beuys ou Morris reflete esta genealogia.
Leonilson opõe o feltro ao voile. A sensibilidade dos materiais serviu de fio condutor à exposição que o artista brasileiro partilha com o alemão Oliver Herring no Museu de Arte Moderna de Nova York. A curadora Starr Figura prova com competência que a alusão a ameaças intangíveis como epidemias se traduz em arte pela desmaterialização da obra, observação fenomenológica sobre um certo comportamento da arte atual, capaz de valer também para a análise de outras épocas (a pintura florentina e sienense depois da peste negra, por exemplo).
Nas entrevistas do catálogo, a arte se converte em álibi da doença. A situação de quem está com os dias contados, com sinais degenerativos acelerados, não oferece ambiente a depoimentos. Coexistem expiação e autodestruição. A valorização da ideologia gay pertence mais ao sem-sentido da hora que a uma instância essencial da obra. Soa como se se compactasse o fazer de Louise Bourgeois ao discurso feminista. A conversa se processa como um jogo em que ambos jogadores fingissem ignorar que usam cartas marcadas. A patologia aplaca a polissemia da fala, devorando alternativas.
Somente em casos excepcionais, produto de lucidez sem falha, irrompe a inversão da tendência e o texto ganha autonomia definitiva, caso de "Marte", de Fritz Zorn, que descreve o percurso do câncer num jovem dramaturgo em admirável registro autobiográfico. Os poemas de Cavafy, instrumentos preciosos para entrar no universo de Leonilson, se tornam igualmente vítima da monocultura interpretativa. Ao contrário da transvanguarda, delineia-se aqui um modismo proveniente do "politicamente correto", qual seja, primeiro enquadrar e depois promover a ciranda das diferenças sob a mesma cadência.
Embora o bordado tome conta do final, a perplexidade alinhavada já existia antes do artista saber que era soropositivo ao vírus HIV. A premunição lembra as obras do surrealista Victor Brauner que testemunhava em sua pintura o terror de perder um olho. Anos mais tarde, ao presenciar uma discussão, o fato acontece. O crescendo emocional de Leonilson alcança o clímax na instalação da Capela do Morumbi, quando exibe literalmente mortalhas, elaborando o ciclo vida-morte-renascimento, alvo primeiro e último dos alquimistas.

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