São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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Coisas breves

DAVI ARRIGUCCI JR.

Em 1962, Otto Maria Carpeaux escreveu uma introdução exemplar aos contos de Anton Pávlovitch Tchékhov (1860-1904) (1). Voltou ao assunto diversas vezes, mas nunca com o mesmo empenho. Desde então, creio que não houve entre nós estudo crítico tão detido, atualizado e consistente sobre o grande contista russo como este livro de Sophia Angelides.
Pequenina, afogueada e pressurosa como uma formiguinha a quem sobrasse pouco tempo para tarefas imensas, Sophia nos deixou, em outro plano -o da pesquisa universitária-, um trabalho modesto, mas igualmente precioso. Selecionou e traduziu 63 cartas de Tchékhov, escritas entre 1883 e 1890, recortando-as e estudando-as para que dessem a ver o pensamento de um escritor que jamais manifestou de outra forma seu ideário sobre a arte da narrativa curta.
Com efeito, delas é possível extrair uma poética do conto, conforme nos mostra no estudo que segue os textos traduzidos, bem situados por um comentário inicial, após a apresentação de Bóris Schnaiderman. Bóris foi quem revelou à pesquisadora a paixão intelectual de sua curta existência. De resto, já abrira caminho para Sophia, num estimulante posfácio de 1985, ao retomar os contos de Tchékhov que selecionara e traduzira em 1959, refundindo-os, em outra edição, sob o título de "A Dama do Cachorrinho e Outros Contos" (2).
Ao contrário dos grandes narradores russos do fim de século, Tchékhov preferiu a brevidade. É certo que escreveu também algumas poucas e extraordinárias novelas: quem não se lembra da "Enfermaria nº 6", de "A Estepe" ou da "Dama" acima referida? Mas, suas incursões no romance, cujas diferenças em relação aos limitados meios de dar forma ao conto reconhece, ficaram no projeto ou não deram certo. É o que também dizem as cartas. Por isso, provavelmente, não pôde fazer parte de um livro de ampla repercussão, "Le Roman Russe", no qual o Visconde E-M. de Vogé deu a conhecer a literatura russa no Ocidente, em 1886.
Tchékhov tinha apenas 26 anos então; era um escritor que esbanjava talento na crônica humorística de costumes, em pequenas anedotas, esquetes e diálogos feitos em poucas linhas para revistas e jornais em que não ousava estampar seu próprio nome. Já havia escrito alguns bons contos -"Camaleão", "A Morte do Funcionário", "O Gordo e o Magro" e outros-, mas não ainda os que lhe dariam fama universal. A estes foi levado, com toda a certeza, por uma carta de D. V. Grigoróvitch, decisiva para seu destino de escritor.
Foi nesse mesmo ano de 86. Nela, Grigoróvitch, autor hoje desconhecido, lhe reconhece o talento incomum e cobra dele a completa dedicação à obra, forçando-o à autocrítica e à mudança de atitude. Sempre desconfiando do próprio valor, Tchékhov passa a aplicar-se de corpo e alma ao ofício de narrador que pedia espaço à sua carreira de médico, dignamente cumprida, com paixão e confiança, até o fim. Em 87 já era o escritor da moda, na boca de todos, conforme conta, sem grandiloquência, numa das cartas.
O contista não abandonou o que fazia. Apenas trabalhou duro, com a matéria e o dom que tinha, até o domínio pleno de sua arte. Na verdade, incorporou a experiência inicial, dando consistência narrativa à crônica de costumes, sem sair da forma breve. À semelhança do que aconteceu entre nós com Machado de Assis, Tchékhov parece ter reelaborado noutra direção elementos tirados da crônica e de certas formas do teatro da época em que também se exercitara, quando decidiu dedicar-se ao novo gênero. Em muitos dos contos consagrados ainda se podem notar os argumentos e os andaimes da construção anterior. Mas, alterou-lhes profundamente o modo de ser ao construir o enredo do conto, a que dá uma estrutura nova e original, com outro ritmo, deslocando o acento para pontos inesperados da história, num sentido pessoal muito inovador com relação ao que se fazia então e ao que se fez depois.
O fato é que o enredo curto é o seu reino, e como construí-lo, o seu problema e a sua novidade: daí resultaria uma decisiva abertura para as formas do conto moderno. E mesmo no teatro, que foi para ele depois uma aprendizagem custosa e dolorida, escolheu as formas mais breves da "brincadeira", da comédia e do drama, entendidos e tratados também de modo bastante peculiar, o que lhes dificultou a aceitação de início, antes de se tornar um dos dramaturgos mais presentes na cena do século 20.
O modelo de conto criado por Edgar Allan Poe, 20 anos antes, com sua adequação de tom à intenção até o desenlace e sua concentração de elementos confluentes para o efeito final único, não foi o dele. Pensa-se que Tchékhov teria inventado o conto sem enredo, o que é absurdo. Entre nós, Carpeaux foi talvez o primeiro a mostrar o erro, afastando também o contista das paragens poetizadas de Katherine Mansfield, tida por sua continuadora. Sem dar ênfase à fábula, àquilo que acontece -Tchékhov chegou a crer que ela poderia estar mesmo ausente-, pontuou de outro modo o discurso narrativo, fazendo recair o acento em pontos inesperados do material, que acabava revalorizado pelo novo procedimento artístico. E revalorizado não por qualquer subjetividade edulcorada ou força retórica, mas pela economia de meios e a tensão das pequenas coisas acionadas com simplicidade, objetividade e concisão; pela descrição veraz, feita com uns poucos detalhes sugestivos; pela criação da atmosfera adequada; pela atenuação do fio causal do enredo e de sua abertura às ambiguidades da "vida tal como ela é na realidade", com a mistura completa do profundo e do superficial, do grandioso e do insignificante, do trágico e do cômico.
Tchékhov parece mover-se por uma intenção realista, mas foge de toda perspectiva com mensagem explícita ou dirigida, de toda exposição direta de idéias de qualquer espécie, de todo enchimento político-social: o escritor deve limitar-se à colocação correta do problema. E abre a narrativa à sugestão simbólica, à suspensão do sentido, à pergunta sem resposta, ao inacabado, atraindo a participação ativa do leitor na configuração final dos significados do relato.
Em suas mãos, a poesia brota de onde menos se espera. Uma garrafa ou um cinzeiro podem dar bom conto, mediante o prisma pelo qual são vistos; o argumento pode estar em qualquer parte, mas vale pelo procedimento que o transforma; o gênero renasce, marcado pelas peculiaridades desse tratamento inusitado e pela afirmação pessoal diante do contexto histórico-social e literário em que o escritor trabalhava e ao qual de algum modo respondia. Tchékhov jamais cedeu aos imperativos do tempo, que exigiam de seus escritos posição clara em moral ou política; descrente e sóbrio, resistiu a torcer sua arte para fazer denúncia social, embora o mosaico de seus contos nos deixe ver com agudeza e precisão o quadro das desigualdades sociais, das mazelas burocráticas, da miséria moral e a atmosfera opressiva da Rússia pré-revolucionária.
Os "caminhos cinzentos" percorridos por suas personagens, conforme a expressão do poeta simbolista Andriéi Biéli, são os do seu tempo e lugar, mas são componentes da estrutura artística e não objeto de propaganda política. O narrador vê fundo e com tristeza o mundo prosaico de suas personagens -muitas delas desvalidas e pobres, crianças maltratadas, animais batidos, bêbados e doentes- e mostra o problema, mas sem alarde ou altissonância, sem qualquer derramamento romântico, em tom menor, mas afinado com os sonhos desfeitos, as promessas vãs, os desejos quebrados.
Ao escrever um conto, Tchékhov gostava, segundo disse, de começar em forte e terminar em7 pianissimo; decerto fez muito mais que isso, ao levar a cabo uma remodelagem completa do gênero. Com seu toque preciso, a narrativa curta é capaz de exprimir a plenitude da vida; no breve, pode caber o mundo todo da épica. E o que é o mais inesperado: nesse mundo enorme que cabe no pequeno, são as pequenas coisas da vida cotidiana que contam. Talvez nisto se encontre o traço mais importante da modernidade do contista, que incorpora à ficção o que não tinha história, os detritos alijados, os refugos do processo, os seres à margem, apresentando o mundo dado de uma nova perspectiva.
O livro de Sophia Angelides convida à reflexão sobre tudo isso, ao estudar a vasta matéria da teoria e da prática da narrativa exposta no texto das cartas e suas entrelinhas. Na verdade, levanta muitas das questões contraditórias que pesaram na formação do contista e, apesar de algumas repetições e pequenas falhas de organização diante de assunto tão amplo e complexo, o interesse crítico de seu estudo vai além. É que fornece elementos para a compreensão da profunda união entre poética e ética que foi fundamental para o escritor. É este, como observou Thomas Mann num ensaio sensível, um dos aspectos mais comoventes da biografia literária de Tchékhov, esse grande homem marcado pela modéstia e pela sincera dúvida quanto ao que era preciso fazer. Terminada a leitura do livro, ressaltam as imagens vivas e estimulantes do laboratório de criação do grande escritor que enfrentou como poucos os ossos do ofício. Na brevidade de sua existência, Sofia soube encontrar um modelo de arte e de vida, trazendo-o até nós em toda sua complexidade e riqueza. Não é possível que tenha sido em vão, embora, como em tantos contos de Tchékhov, a vida prossiga, em pianissimo.

NOTAS
1. A "Introdução" de Carpeaux se encontra no volume seis, inteiramente dedicado aos contos de Tchékhov, da "Antologia do Conto Russo" organizada, em nove volumes, sob a orientação do próprio Carpeaux e de Vera Newerowa para a Editora Lux, do Rio de Janeiro.
2. A primeira edição dos contos traduzidos por Bóris era da Editora Civilização Brasileira; a edição revista e refundida foi publicada pela Max Limonad, em São Paulo.

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