São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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O problema Cavalcanti

CARLOS AUGUSTO CALIL

Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro que, tendo marcado presença nos cinemas francês e inglês, sobretudo na primeira metade do século, veio depois enterrar seu prestígio numa granja em São Bernardo, onde imigrantes italianos megalomaníacos criaram a sua Cinecittà com o significativo nome de "Vera Cruz", é uma alma penada que vaga impenitente em busca de uma escola ou nação cinematográfica onde possa desembarcar o seu extenso verbete.
O cinema inglês, a quem deu o melhor de si em campos tão distantes quanto o documentário social e o filme de estúdio, ignora a sua contribuição, na mesma medida em que tem dificuldade em pronunciar o seu nome, convenientemente abreviado para Cav. Os franceses, que adoram patrocinar artistas estrangeiros, se esquecem do belo retrato que Cavalcanti tirou de Paris em 1926, em "Rien Que les Heures". Os brasileiros, jamais fomos capazes de absorver a volta desse arrogante filho pródigo, que pensava refundar o cinema nacional, no início dos anos 50, desprezando solenemente as dolorosas e frustradas experiências anteriores.
O livro que ora temos em mãos é uma versão do catálogo publicado pelo Festival de Locarno num já remoto 1988, quando da apresentação de uma retrospectiva de fôlego das obras de Cavalcanti. Não chega a causar espanto a indiferença das instituições nacionais -mostra de cinema, cinemateca, museu da imagem e do som, centro cultural, ministério- pela apresentação dessa rara mostra entre nós. É que Cavalcanti não é suficientemente exótico, nem primitivo, para os padrões de um público que se revela dócil à mídia e aos modismos.
Embora Claudio Valentinetti & Lorenzo Pellizzari assinem a publicação, seria mais apropriado atribuir-lhes o papel de organizadores do volume, pois seus escritos ocupam apenas 56 das 336 páginas preenchidas com texto. Completam-no uma bela coleção de fotos, filmografia e bibliografias extensas, mesmo que, diante de uma obra tão difícil de abordar, ambas apresentem lacunas.
Na introdução, assinada conjuntamente, os críticos italianos tentam a ingrata tarefa de definir o objeto de seu estudo. Rendendo-se à evidência de que Cavalcanti é internacional por adição, partiram os críticos para a divertida montagem de um boneco de engonço, composto de "tagarelice francesa, relojoaria suíça, um pouco da introspecção inglesa e da improvisação italiana", temperada, é claro, pela "preguiça latino-americana". Mas o problema Cavalcanti está longe de se solucionar com a perspectiva de seu internacionalismo.
No livro-catálogo, Pelizzari assina o ensaio "O Sonoro, a Paramount e o Cinema Inglês", rico em informações sobretudo a respeito do período em que Cavalcanti dirigia versões européias de filmes da Paramount, medida adotada pelas "major companies" enquanto ainda não estava disseminado o uso das legendas. Examinando as críticas quase sempre desfavoráveis dos filmes de Cavalcanti, Pellizzari desvenda o mecanismo dessa incompreensão: eram tão surpreendentes quanto frequentes as reviravoltas na obra de Cav, que os críticos só atinavam com uma determinada proposta quando ela já havia sido superada pelo seu próprio autor. Pellizzari aponta a inconstância do cineasta, estimulada pela busca do risco e da pesquisa, como causa desse desencontro. Quando o leitor está prestes a aceitar seu argumento, ele se sai com uma justificativa no mínimo polêmica: são traços dos nascidos sob o signo de Aquário! Só mesmo cantando "sottovoce" "when the moon is in the seventh house...".
Em outro texto -"O Período Internacional e o Declínio"-, ao lado das informações sobre o trabalho errante de Cavalcanti, dividido entre a Europa Central comunista, Itália e França, com uma rápida passagem por Israel, o crítico comenta a terceira tentativa frustrada de ele se instalar no Brasil, quando pretendia desenvolver o projeto "O Dr. Judeu", reconstituição do processo que condenou à morte o dramaturgo Antônio José da Silva. Nesse ponto, Pellizzari se deixa contaminar pelo sentimentalismo da crítica brasileira que fez de Cavalcanti "o eterno rejeitado", desconhecendo as condições reais em que fracassou a produção daquele que teria sido o seu último filme. O mínimo que se pode dizer desse lamentável episódio é que Cavalcanti não soube se cercar de colaboradores aptos para levar a cabo a ambiciosa empreitada.
Predomina no volume a seção dedicada à antologia dos escritos -diretos ou indiretos- de Cavalcanti. As novidades são diversas, a começar pela autobiografia "Uma Vida", escrita em 1953 por um Hermilo Borba Filho que empresta sua pena ao amigo, no âmbito de um esforço coletivo para "limpar" a imagem de Cavalcanti, muito abalada após ferrenha campanha promovida pelos desafetos. Nos textos que assina, o cineasta demonstra uma habilidade rara, a de ser capaz de refletir sobre a sua obra e a dos seus contemporâneos, com uma lucidez e uma percepção de fazer inveja a muito crítico com carteira assinada.
A tradução, muito deficiente, comete erros e impropriedades, cujo efeito cômico, mesmo involuntário, é arrasador. Alguns exemplos: "épater le bourgeois" virou "espantar o burguês"; exibidores ("exploitants") são aqui "exploradores"; para falar de dificuldades com o espólio, mencionam-se "obstáculos espoliativos"; a força da interpretação espontânea dos atores é referida como "poder espontâneo do jogo" etc. etc. Em certos trechos, a tradução impossibilita a compreensão do texto; em outros, brinda-nos com a conjugação equivocada do verbo "intervir".
Como se não bastasse, não há tradução dos títulos dos filmes estrangeiros, não foram eliminadas notas preparadas para o leitor europeu, e mantêm-se distrações do próprio Cavalcanti, que data de 1948 um texto no qual menciona sua experiência na Vera Cruz, iniciada em 1950... Apesar disso, o projeto gráfico é sóbrio e de bom gosto, e a capa, emblemática da situação de um exilado no próprio país.
A fotografia estampada nas capas é um primor: Cavalcanti observa sem compreender de todo o seu interlocutor Grande Otelo, metáfora de um Brasil inalcançável, talentoso, espontâneo, vaidoso, indisciplinado, caprichoso, arbitrário, sentimental, exagerado, incoerente. E se Cavalcanti, que um dia recusou a nacionalidade britânica, conseguiu perceber, ainda que vagamente, a natureza dessa terra inóspita que era a dele, jamais a aceitou. Quem sabe resida aí a fonte da melancolia que tinge o seu melhor filme brasileiro, o notável "Simão, o Caolho".

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