São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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Rompendo o pacto de silêncio

IRENE DE ARRUDA RIBEIRO

Uma das questões mais instigantes nesta trilogia sobre a memória militar de 1964 a 1985 é a de uma "predisposição a pensar que o passado configura-se como algo que não deve ser remexido", que justifica o "pacto de silêncio" entre os militares, mantido sobre este período da história recente brasileira. Em dissonância com este posicionamento, emerge uma outra questão considerada consensual nas falas dos militares: a de que "tanto a imprensa quanto a opinião pública teriam sido injustas e mal-informadas quanto à atuação das Forças Armadas durante a repressão".
Nesta avaliação está embutida uma questão importante posta pelos autores dos ensaios introdutórios e organizadores dos livros: a de que na visão dos militares entrevistados está implícito que "se venceram a guerra contra as organizações da esquerda revolucionária, foram derrotados na luta pela memória histórica do período". E ainda que, "se normalmente a história esquecida é a dos vencidos, na questão do combate à guerrilha haveria como que um movimento perceptivo inverso -a história ignorada seria a dos vencedores".
Esta dissonância, entre a posição de não remexer no passado e a avaliação de que, enquanto vencedores da "guerra", são ao mesmo tempo derrotados na luta pela memória histórica, pode ser considerada uma das vias interpretativas construída a partir da trilogia, trabalho este que, no entendimento dos organizadores, pode ser considerado, sobretudo, uma "fonte de pesquisa".
O que esta dissonância indica é que a "memória entra em disputa" (Pollak) no que se refere a esse passado recente da história brasileira. A avaliação, na visão dos militares, de que embora vencedores sejam também derrotados, indica, de algum modo, que é problemática na atualidade a manutenção deste pacto de silêncio. Este pacto só se sustentou efetivamente enquanto se dispunha de um poder de silenciamento.
O rompimento do pacto de silêncio, que se dá neste momento, está diretamente relacionado com o processo de rompimento deste poder de silenciamento. Não se pode esquecer aqui o caráter extremamente prolongado, protelado e negociado da transição brasileira, o fato de ter ocorrido no contexto de um regime autoritário e o alto controle exercido sobre ela pelas Forças Armadas. É preciso lembrar ainda a presença militar nos três primeiros governos civis e a recuperação de parte do espaço político dos militares no governo Itamar em relação ao governo Collor (Sallum e Sister).
A longuíssima transição e o poder de silenciamento que ela preservou em grande parte contribuiu, sem sombra de dúvida, para o esquecimento ou a diluição, na memória coletiva, dos efeitos do autoritarismo e da repressão política no Brasil a partir de 64/68. Se se agregar ainda a questão da anistia, em 79, que significou um "acordo" -cujo caráter extremamente problemático fica explícito na comparação entre várias das entrevistas da trilogia-, que a abertura não levaria à investigação do passado e que estabelecia o compromisso de que o aparelho repressivo não seria investigado nem julgado, pode-se evidenciar a dimensão do poder de silenciamento sobre a memória coletiva a partir da imposição do esquecimento que interdita aquela investigação.
Mesmo após 1985, com a Nova República, este poder de silenciamento ainda está relativamente presente, dado o caráter pactado (não formalmente) e problemático desta transição -o que é revelado em várias das entrevistas que apontam para o conflito entre as facções militares no que se refere à questão da abertura. Neste momento, como indicam os organizadores da trilogia, os "próprios militares que se retiram de cena pautaram sua conduta por um silêncio político só esporadicamente quebrado". No entanto, a quebra deste silêncio se fez em algumas ocasiões, quando a questão das prerrogativas militares e a questão das áreas de potencialidade de conflito se colocaram.
Estas áreas -"violação de direitos humanos", "iniciativas do governo democrático face à missão da organização militar", "orçamento militar" (Stepan)- constituem-se em questões para os estudos sobre a "consolidação democrática", assim como são referências importantes para as condutas políticas efetivas no período que se inicia com a Nova República. Nas conjunturas posteriores, a intensidade destas questões não é tão expressiva, mas também não se pode afirmar que não tenham se configurado como problemas até o momento presente (lembrar aqui o recente episódio do adido militar em Londres denunciado como ex-torturador e a questão da negociação em torno da lei referente à questão dos mortos e desaparecidos políticos).
Só é possível compreender o "rompimento do pacto de silêncio" entre os militares e a sua disponibilidade em falar -apesar de algumas ausências sintomáticas indicadas pelos organizadores-, a partir de uma perspectiva que entende o acesso ao passado como uma construção da memória. No caso em questão, da "memória militar" sobre os acontecimentos recentes da história brasileira, tanto o silenciamento quanto o "rompimento do pacto de silêncio" devem ser compreendidos nesta perspectiva da construção de uma memória coletiva.
Utilizando as entrevistas como recurso da história oral, os organizadores da trilogia conseguiram obter um painel de visões dos militares sobre questões antes interditadas e portanto nunca tratadas por eles próprios -para citar algumas, a questão da tortura, o episódio do Riocentro, o episódio Frota-, que apontam para as importantes clivagens entre as facções militares, ao mesmo tempo em que mostram a importância da preservação da imagem da corporação. Este painel sem dúvida alguma se constitui em documento fundamental para as pesquisas sobre a história recente da sociedade brasileira.
A posição militar de que o "passado não pode ser remexido" (que indica uma certa construção da memória em que seletivamente parte dela deve ser mantida clandestina) se desloca para uma outra posição de uma construção reativa de uma "memória militar" sobre aquele período. A percepção militar que de "vencedores" se tornaram "derrotados" na luta pela memória histórica indica, como já foi apontado, que a memória sobre a história recente brasileira entrou em disputa, o que revela que há uma dimensão de poder de construção desta memória que não pode ser negligenciada. Se as falas militares vêm à luz agora (a partir de 1992), isto não significa que não tenha havido um processo de disputa em torno desta memória, que se inicia desde o final dos anos 70, com tentativas de revisão de uma "memória dominante" que se manteve enquanto perdurou o poder de silenciamento que a sustentava.
Citando alguns momentos significativos, sem a pretensão aqui de esgotar a análise deste processo, é possível destacar diferentes registros de intervenção na memória histórica do período: a campanha pela anistia (79), a ação judicial contra o Estado impetrada pela família Herzog (78), a campanha das diretas-já (84), as tentativas de esclarecimento, não realizado, do episódio Riocentro (81), a publicação dos resultados do "Projeto Brasil: Nunca Mais" (85), as publicações de inúmeras memórias e ensaios de interpretação de ex-militantes políticos (início dos 80 em diante), as comissões de familiares de mortos e desaparecidos políticos, a comissão de mortos e desaparecidos políticos da Câmara Federal (91), a lei 9140 que prevê o pagamento de indenizações às famílias das vítimas da repressão (95).
Estas tentativas de revisão continuam em curso, como a relativa à questão dos mortos e desaparecidos políticos. A disputa em torno do problema do esclarecimento das circunstâncias destas mortes e desaparecimentos constitui-se ainda em área de potencialidade de conflito.
A importância desta trilogia sobre a memória militar está dada sobretudo pela possibilidade que ela instaurou de trazer à luz as falas militares sobre temas antes absolutamente interditado interno é muito importante-, mostrando o valor dessa atividade. Valor, porque gera emprego, além do mais. E poucas atividades geram emprego como o turismo.
Então, nós vamos apoiar. Vamos continuar apoiando muito. E eu até, pessoalmente, como viajo, e viajo bastante, e vou continuar viajando, porque isso é importante para o Brasil -ainda agora, vou ao Japão, e isso chama a atenção para o Brasil-, eu, quem sabe, possa ajudá-los na propaganda do Brasil.
Muito

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