São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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Artaud, personagem de ficção

ALBERTO MARTINS

Este é um livro repleto de riscos. Num dia qualquer de 1992, o narrador, sentado diante de uma tela de computador no Rio de Janeiro, capta a presença de Antonin Artaud (1896-1948), poeta e homem de teatro, perambulando à saída de um cinema, na tarde úmida do verão parisiense de 1935.
Esta imprevista conexão leva o narrador a acompanhar Artaud em suas andanças e viagens. Enquanto o poeta vaga pela cidade como um pária, sem pouso fixo, pobre, magro, sem dinheiro para seus projetos (o pouco que tem gasta com drogas ou, extremo oposto, com clínicas de recuperação), o narrador vai entremeando trechos de sua infância em Marselha, seu rompimento com o grupo surrealista, suas considerações sobre o teatro, o cinema, a difícil relação que mantém com os figurões da cena cultural francesa.
Naquela altura, é bom adiantar, Artaud reconhecia unicamente duas fontes de cultura no mundo: o México e o Tibete. Mas como este último dirigia seus ensinamentos para o mundo dos mortos, a esperança de uma renovação profunda para a Europa decadente só poderia vir de terras mexicanas. Assim começa a crescer em Artaud o desejo de uma viagem ao México e o vago projeto de encenar uma peça sobre a Conquista, que despertasse a juventude francesa e mexicana para os valores vitais do mundo pré-cortesiano.
Se, por um lado, esta inusitada conexão narrador-Artaud é um ponto de partida extremamente promissor (e corajoso -pois ninguém, em sã consciência, esperaria ser tranqila uma viagem desta natureza), por outro, não se pode ignorar os problemas que tal empreitada suscita e, ainda menos, discutir os estratagemas que o autor propõe para enfrentá-los.
Em primeiro lugar, cabe observar que, sob o pretexto de denunciar a própria armação ficcional e construir uma narrativa em tempo real (simultaneamente Paris-1935, Rio de Janeiro-1992), o narrador acaba sobrecarregando o texto com enunciados do tipo "a trapaça estilística que estou inventando com vistas a construção ficcional de um diálogo entre nós". Ou ainda: "gosto do jogo que crio para dar continuidade a esta narrativa e continuo a me nomear como interlocutor no discurso intransitivo dele". Assim, é comum se ter, após uma longa fala de Artaud, algo do tipo: "Escuto estas palavras e as digito", "Escrevi na tela do computador", "Digito no meu computador", etc. Tudo isso resulta extremamente artificial e de eficácia duvidosa, pois tais procedimentos em vez de gerarem uma tensão a mais, simplesmente afrouxam, fatigam o texto, tornando a narrativa pesada, morosa. Para se ter uma idéia -embora este dado isolado não signifique nada-, Artaud só chega ao México na página 245.
A este se soma um segundo aspecto. O narrador adota, com relação a Artaud, uma postura descritiva-interpretativa. Ou seja: quer descrever seus atos, interpretar seus sentimentos e -algo mais delicado ainda- até mesmo as suas íntimas modulações psíquicas.
Fosse o protagonista um caráter inteiramente ficcional, até aí nada de mais. Mas eleger Antonin Artaud como interlocutor não é tarefa fácil. Ou estamos à altura de sua obra ou é melhor que esta fale sozinha. Com certeza, o narrador sabe dessas dificuldades, pois a certa altura explica: para Artaud "a força espiritual das palavras tinha de ser idêntica de Artaud a partir de uma ótica distinta. Se o narrador, por exemplo, se destacasse de seu personagem e o marcasse à distancia, secamente, como um lúcido zagueiro adversário, deste confronto poderia emergir a tensão necessária para uma narrativa desse porte. Mas o que ocorre na relação narrador-Artaud, neste "pseudojogo de pergunta e resposta", é de uma intimidade falsa, falaciosa. A certa altura, quando o rosto do poeta francês se aproxima demasiado do narrador, este diz: "Assusto-me com a proximidade dos olhos azuis. Minto: delicio-me com a proximidade deles".
De modo mais claro: o que parece comandar a narrativa de "Viagem ao México" é menos um impulso de escuumanos", "iniciativas do governo democrático face à missão da organização militar", "orçamento militar" (Stepan)- constituem-se em questões para os estudos sobre a "consolidação democrática", assim como são referências importantes para as condutas políticas efetivas no período que se inicia com a Nova República. Nas conjunturas posteriores, a intensidade destas questões não é tão expressiva, mas também não se pode afirmar que não tenham se configurado como problemas até o momento presente (lembrar aqui o recente episódio do adido militar em Londres denunciado como ex-torturador e a questão da negociação em torno da lei referente à questão dos mortos e desaparecidos políticos).
Só é possível compreender o "rompimento do pacto de silêncio" entre os militares e a sua disponibilidade em falar -apesar de algumas ausências sintomáticas indicadas pelos organizadores-, a partir de uma perspectiva que entende o acesso ao passado como uma construção da memória. No caso em questão, da "memória militar" sobre os acontecimentos recentes da história brasileira, tanto o silenciamento quanto o "rompimento do pacto de silêncio" devem ser compreendidos nesta perspectiva da construção de uma memória coletiva.
Utilizando as entrevistas como recurso da história oral, os organizadores da trilogia conseguiram obter um painel de visões dos militares sobre questões antes interditadas e portanto nunca tratadas por eles próprios -para citar algumas, a questão da tortura, o episódio do Riocentro, o episódio Frota-, que apontam para as importantes clivagens entre as facções militares, ao mesmo tempo em que mostram a importância da preservação da imagem da corporação. Este painel sem dúvida alguma se constitui em documento fundamental para as pesquisas sobre a história recente da sociedade brasileira.
A posição militar de que o "passado não pode ser remexido" (que indica uma certa construção da memória em que seletivamente parte dela deve ser manti

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