São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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O Orçamento sempre foi obra de ficção

MAILSON DA NÓBREGA

Já estamos no terceiro mês do exercício fiscal sem Orçamento. Já foi pior. Houve vez em que a chamada lei de meios só foi aprovada pelo Congresso no fim do ano.
É por essas e outras que se diz que o Orçamento no Brasil é peça de ficção. A expressão já foi usada várias vezes. Aluízio Mercadante, do PT, gosta muito de utilizá-la.
Celso Pinto ressuscitou-a em sua coluna na Folha (31 de janeiro), quando explorou uma das facetas do nosso Orçamento: a técnica de controlar os gastos pelo adiamento de despesas (no passado recente, com a ajuda da inflação).
Ele mostrou como é grave o Orçamento "ficar cada vez mais distante do exercício coletivo de escolhas de prioridades".
Não é de agora que o Orçamento é uma peça pouco séria entre nós. Isso tem a ver com nossas origens ibéricas. O desprezo está, como se diz, no sangue. Mudar atitudes em torno do assunto vai requer uma forte ruptura cultural.
Nos países anglo-saxônicos, o Orçamento é parte de suas raízes históricas. Lá, o processo, tal como hoje o conhecemos, resultou de um movimento de baixo para cima, começando na Inglaterra com a revolta dos barões feudais contra o rei João Sem Terra.
A fonte remota da estável democracia inglesa está na Carta Magna de 1215. Esta nasceu essencialmente de uma questão orçamentária: impor limites aos gastos do soberano e estabelecer que os impostos só podiam ser cobrados se instituídos no exercício anterior.
A base conceitual do Orçamento inglês deriva da necessidade de proteger o contribuinte contra o governo. A idéia se consolidou e se transmitiu às colônias. Basta ver a pugna recente sobre o orçamento entre o Executivo e o Legislativo nos EUA.
Em Portugal, não existiu o feudalismo, como mostrou Raymundo Faoro. O rei centralizava todos os poderes. Os nobres portugueses não eram barões feudais, mas funcionários do Tesouro Real.
O Orçamento português refletia interesses formais do monarca Nasceu, portanto, de um movimento de cima para baixo.
O Orçamento constituía, ali, um canal por onde se podia extrair recursos da Coroa. Gerava prestígio. Era fonte de recursos para a pompa e o luxo. Até hoje, muitos parlamentares da ex-colônia Brasil pensam assim.
Aqui nunca prosperou a idéia banal da restrição orçamentária. Para a maioria dos parlamentares, os recursos são ilimitados. O gasto seria mera questão de vontade política.
Ainda há quem pense que emitir dinheiro para apoiar a produção não é problema, já que depois ele volta com as vendas da atividade financiada.
A Constituição determina que "a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da receita" (art. 165, par. 9º). Tradução: a lei orçamentária só pode tratar do Orçamento.
Esse acaciano parágrafo tem vigorado com diferentes redações desde 1926. Visa a evitar a "cauda orçamentária", prova inequívoca do descaso com Orçamento. Consistia em enxertar nele as mais incríveis matérias, até promoção de funcionários do Executivo.
No regime militar, a elaboração do Orçamento melhorou. Metade da despesa vinha, todavia, do Orçamento Monetário. Este era aprovado pelo Conselho Monetário Nacional e não pelo Congresso.
No princípio da década de 80, a crise fiscal explodiu em meio à exaustão do modelo de desenvolvimento baseado no Estado e da eclosão da dívida externa. Foi a partir daí que se percebeu o primitivismo institucional imperante no Orçamento e a necessidade de mudanças.
O realismo deu seus primeiros passos com as reformas de 1986 e 1937. Foram extintos o Orçamento Monetário, a "conta de movimento" no Banco do Brasil, as funções de fomento do Banco Central e o poder do Conselho Monetário de autorizar a expansão da dívida pública. Unificou-se o Orçamento.
Com a Constituição de 1988, piorou de novo. Embora seu capítulo orçamentário impedisse a reinstituição das emendas eleitoreiras do passado (art. 166, par. 3º), os parlamentares acharam um jeitinho de driblá-lo. Chegaram ao cinismo de reestimar a receita para abrir espaço aos seus interesses eleitorais.
A estabilização monetária tornou mais difícil a gestão do Orçamento pelo método da postergação das despesas. A moeda estável tem, felizmente, uma grande vantagem: impulsiona as mudanças. Podemos estar perto do realismo orçamentário, mas até agora o Orçamento é mesmo uma peça de ficção. Desde o descobrimento.

Maílson da Nóbrega, 53, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), escreve às sextas-feiras nesta coluna.

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