São Paulo, sexta-feira, 8 de março de 1996
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Cinema mal-feito educa para o bom gosto

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A TV Bandeirantes descobriu uma maneira de aumentar o Ibope na programação da tarde: é o "Cine Trash", todos os dias às 15h15. Ninguém menos do que Zé do Caixão apresenta o programa, composto do refugo dos filmes de terror classe C dos anos 80 em diante.
É uma jogada de marketing ao mesmo tempo simples e genial. A Bandeirantes devia ter um depósito de filmes ruins de terror; não tinha remédio se não exibi-los, obtendo zero nos índices de audiência. Criou-se, então, uma grife: a grife "Trash". Um logotipo em vermelho, verminal, escorredio, ilumina permanentemente o canto direito da tela enquanto o filme péssimo está passando. A presença de Zé do Caixão já adverte o espectador de que coisa boa não virá.
Claro que não vem. Assisti nesta quarta-feira a um bom pedaço de "Criaturas", uma imitação muito mal-feita de "Alien". Terror na nave espacial. Os atores tentam levar sustos. Mas o horrendo formigão de látex não chega a impressioná-los muito.
O "além", nesses filmes, é sempre algo horrendo mas pouco inteligente. Contenta-se com a ameaça exercida pela própria feiúra. Os excessos de maquiagem deveriam paralisar o adversário, num olhar de Medusa. Mas como são mortos, ou mensageiros da morte, os monstros se encaminham lentamente rumo à vítima. O morto-vivo é uma espécie de débil mental. Claro: ele ainda tem de parecer morto, mesmo quando se move. Dá tempo para a mocinha emitir gritos e se desvencilhar, por exemplo, do cano de mangueira que lhe enrosca os pés.
Em seus movimentos empastados e mudos, o zumbi, o monstro, são sempre o falo nesses filmes para adolescentes. Não que as meninas vejam "Cine Trash"; detestam-no, et pour cause. Os garotões é que gostam das espaçonautas virginais, das cheer-girls, das estudantes ou das menininhas se apavorando diante de rígidos cadáveres moventes.
Basta, porém, de psicanálise. Creio que há algo de saudável nos filmes trash, no terror classe C.
Quando eu era pequeno, morria de medo com qualquer coisa. "National Kid", com seus incas venusianos, já era demais para mim. As gargalhadas satânicas do dr. Sanada, na história sobre os seres abissais, gelavam-me o sangue. Nunca entendi, depois, por que todo ser satânico tem de dar gargalhadas --de Mefistófeles em diante, são todos muito bem-humorados, ao contrário do diabo de Guimarães Rosa, que é "o-que-nunca-ri". Talvez porque estejam associados ao prazer, coisa demoníaca, ou talvez apenas porque dramaticamente funciona que prelibem o triunfo antes da derrota.
Seja como for, eu desligava a TV de medo antes que o Bem triunfasse sobre o Mal. Ia dormir na certeza dos pesadelos. Estes se manifestavam na sombra das perebas de pintura que havia em meu quarto; numa certeza, ainda mais infantil, de estar ouvindo as batidas do próprio coração. Eu devia ser criança o bastante para ouvi-las, ou melhor, era ainda criança para ouvi-las de vez em quando... e o ritmo sinalizava a proximidade dos pesadelos, como numa trilha sonora inventada pelo corpo, esse inimigo indominável que, nas horas vagas, assume o papel mais civil de "inconsciente".
A TV Bandeirantes exibia, quando eu tinha uns 13 ou 14 anos, a série "Cine Mistério", toda sexta-feira, depois das dez. Foi aí que aprendi a não ter mais medo de filme nenhum. Eram produções antigas, da década de 50, em preto e branco. Um Boris Karloff caquético tentava conjurar as forças do Mal. Bruxas eram supliciadas na Nova Inglaterra. Eu me testava. E percebi que não tinha mais medo. Era mal-feito, ingênuo demais para que eu pudesse ter medo.
No meu tempo, era "Cine Mistério", nas noites de sexta-feira. Havia um terror real, a ser vencido. Hoje, é "Cine Trash", no abobado horário da tarde. Sua função não é mais exorcizar o terror, mas cultuá-lo.
Vejo nesse fenômeno raízes muito razoáveis. Em primeiro lugar, a fascinação do adolescente pelo mal-feito, pelo brega, pelo ridículo. Ninguém mais do que o adolescente sofre a tirania do ridículo. Basta cortar o cabelo, comprar um tênis novo, que seus colegas zombam para valer. Encontrar alguma coisa na TV que seja obviamente, quase que intencionalmente, ridículo, é tudo o que quer um moleque de 14.
É claro que um moleque desses gosta do mal-feito. Suas lições de casa, seus desenhos, sua aparência padecem do mesmo mal. Confrontado com a perfeição dos filmes de Hollywood, com o sucesso de James Bond, com a imagem ideal do pai que tenha, qualquer deslize lhe é educativo. Pobre do menino que teve um pai perfeito; pobre de quem erige Schwarzenegger como modelo...
E depois, um cinema ruim como esse pode funcionar como educação do gosto. Aprendemos assim a reconhecer o que é um mau ator, um enredo precário, um diálogo capenga. Imagine se só tivéssemos bons exemplos a seguir. Ninguém perceberia a genialidade da interpretação feita por Horowitz de uma mazurca de Chopin, se não a tivesse comparado com a de dezenas de alunos de conservatório.
Mas há um outro aspecto, mais mercadológico, mais ingênuo do que o que vim desenvolvendo até agora.
É o fato de que, para vender um produto, precisa-se de uma grife. A Bandeirantes encontrou sua grife, com "Cine Trash", como se dissesse: "É isso mesmo, somos ruins". Basta dizer isso, que ficam menos ruins do que eram. Pouco importa: a grife corresponde ao esperado.
Não se consome tanto o produto, quanto a imagem que esse produto projeta. A propaganda se faz menos literal. Deixa de dizer que tal sabonete é ótimo, para dizer que tal sabonete será ótimo se você for ótimo o bastante para usá-lo. E, se tal filme é péssimo, você é inteligente o bastante para perceber que é péssimo. Em caso de dúvida, o logotipo no canto direito da tela avisa: isto é "Cine Trash".

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