São Paulo, sábado, 9 de março de 1996
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O sorriso de Yigal Amir se alastra pelo mundo

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Os jornais de terça-feira desta semana, com a página internacional ocupada por mais um atentado terrorista do Hamas, ou da Jihad Islâmica, em Tel Aviv, mal tiveram espaço para detalhar o primeiro testemunho prestado à Justiça de Israel por Yigal Amir, o assassino judeu do primeiro-ministro judeu Yitzak Rabin, dia 4 de novembro de 1995.
A televisão também não teve espaço para esse depoimento. Mas sou capaz de jurar que o mesmo sorriso de sempre iluminava docemente a face do jovem assassino. Até agora, sempre que apareceu na televisão, ele sorria. Amável, educado, sorridente. Séria, ou com expressão agressiva, a cara de Amir não me perturbaria, ou não mais que a de qualquer outro criminoso que se instala por um momento em nossa sala, quando vemos televisão.
Por que sorri? É um sorriso tão tranquilo que nos dá idéia de um jovem em paz consigo mesmo, graças ao dever cumprido. Ele deve estar lembrando o tempo todo que levou preparando sua arma com balas dum-dum, inventadas pelos ingleses na cidade indiana chamada exatamente Dum-Dum. Pelo que entendo tais balas (proibidas desde 1899 por uma Convenção da Haia) têm uma parte oca para se estilhaçarem por completo quando se instalam no alvo, ou, no caso, dentro do corpo de Rabin. Como disparou sua arma bem de perto, Rabin não tinha a menor chance de escapar com vida: Amir chegou a metro e meio de distância do alvo. De certa forma, foi o crime perfeito, já que não entrava nos planos de Amir escapar em seguida, tentar fugir. Ele poderia, isto sim, ajoelhar-se e agradecer ao Deus que serve, por lhe haver facilitado tudo. Ajoelhar-se e sorrir o tal sorriso que me inquieta mais do que os próprios atentados coletivos, que matam muito mais gente. O intuito de Amir parece ter sido o de inspirar outros assassinos de classe e de dar força e ânimo a uma crença religiosa. Acho que ele sorri porque não virou um homem-bomba, exterminando dezenas de pessoas num ônibus, num supermercado. Os que cometem crimes assim têm vocação suicida, quase nunca escapam, mas se escaparem, seres grosseiros que são, mostrarão cara de bandidos, ou, da melhor das hipóteses, de meros soldados rasos de uma predestinação que aceitam às cegas.
Falta-lhes o sorriso de Amir, que, provavelmente condenado pelo governo de Israel à prisão perpétua, passará o resto de seus dias sorrindo entre quatro paredes. Aliás, deve ter sorrido mais ainda agora, ao dar seu primeiro depoimento, pois está vendo os brutais atentados do Islã que ele em grande parte provocou, e os dias de angústia que está vivendo Shimon Peres, que desejaria, como desejava Rabin, como deseja Arafat, instilar bom-senso, paciência e espírito de paz entre árabes e judeus. Foi para derrubar, em pleno vôo, essa idiota pomba da paz com o ramo de oliveira no bico que Amir preparou suas balas dum-dum e chegou o mais perto que podia de Yitzak Rabin.
Haverá precedentes históricos de assassinos gloriosos, ou que se julgaram gloriosos, e se puseram a docemente sorrir depois de atingirem o alvo? Penso a esmo em assassinos, como Brutus, uma espécie de discípulo de Cesar que acabou por apunhalá-lo, ou em traidores que levaram à morte, como Judas Iscariotes. Brutus ainda encontra, aqui e ali, defensores porque servia, contra o imperador e semideus Cesar, o ideal republicano. Mas que diabo, não precisava agir daquela maneira e ainda aguentar na cara a pergunta imortal de Cesar: "Até você, Brutus?" O Judas, coitado, não só se enforcou, como passou a ser odiado pelos cristãos e não conseguiu atenção nenhuma dos judeus ortodoxos, que naturalmente preferem passar toda a culpa da crucificação para os romanos, que governavam a Judéia e comandaram o julgamento daquele que se dizia filho de Deus e descendente de Davi.
Ou haverá alguma vaidade, alguma vontade de entrar na história nesse sorriso de Amir, que tanto me abala: terá ele alguma coisa a ver com os "heróis" cujo padrão é aquele Heróstrato, que tocou fogo no templo de Diana em Éfeso, só porque o templo era uma das Sete Maravilhas do Mundo, e, ao destruí-lo, ele, Heróstrato, ficaria famoso pelo resto dos tempos? Não se pode negar que Heróstrato, até hoje, nos dirige por cima dos tempos (ele incendiou o templo de Diana em 356 a.C.) um certo sorriso, como quem diz: "Consegui ou não deixar meu nome na História: aposto que você aí não sabe quem fez o tal templo de Diana, ou Artêmis, mas o meu nome você guardou, não guardou? Qualquer livro bom de História fala em Heróstrato".
É a pura verdade, mas que pode ter esse pilantra a ver com Yigal Amir e seu suave sorriso de assassino? É claro que ele também inscreveu, mero estudante que era, seu nome na história de Israel. Mas a mim não ocorre, e acho que a ninguém ocorrerá, imaginar que foi pensando em algum tipo de glória meramente histórica que Amir esculpiu suas balas dum-dum.
O sorriso de Amir só pode ser entendido por outros fundamentalistas, como ele próprio. Para eles, o destino histórico de seus respectivos países se confunde com um destino religioso, comandado por Deus. Acontece que Deus, pelo visto, não foi um bom demarcador de limites, como teria sido nosso Rio Branco, que Rui Barbosa chamava de "deus ex-terminus", o Deus das fronteiras, dos limites. Em sua aventura espacial o homem ainda não descobriu, a partir da Terra, outro planeta amável, acolhedor, e na Terra já não cabemos tantos. Quando invadiam os países vizinhos, em sua total brutalidade, os nazistas agiam em nome do que chamavam "Lebensraum", espaço vital. No Oriente Médio a luta pelo espaço vital -e pela água vital- é terrível, antiga, incessante.
E começa a se alastrar pelo mundo inteiro, por motivos egoístas, criminosos, outra luta pelo espaço vital. Como no Brasil, país territorialmente imenso mas onde a classe abastada e a classe média alta sufocam os pobres, negam a eles até espaço para plantarem o que comem, e, nas cidades, obrigam os desvalidos a morarem em favelas, onde são, já um tanto sistematicamente, eliminados pelas enchentes ou pela polícia, isto é, o governo. Os mais corajosos, os mais inspirados, são presos e separados até mesmo dos filhos de colo que possam ter, como Diolinda Alves de Souza.
O sorriso de Yigal Amir, que já pode ser entendido por todos os fundamentalistas, judeus ou árabes, em pouco tempo passará a iluminar, num país injusto como o Brasil, os sem-terra, os sem-casa, os sem-emprego.

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