São Paulo, sábado, 9 de março de 1996
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Ricca encontra nova música em Shepard

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Grilos em estéreo, cozinha com janelas vazadas para acompanhar a saída das personagens, um jardim apertado à frente.
Certo, em grande parte é o que Sam Shepard pede nas indicações da peça -mas Marco Ricca, se dependesse da "mise-en-scène" de "Oeste", não ganharia distinção alguma como diretor, nesta sua estréia profissional.
Não poderia ser mais contido, antiquado mesmo. Teatrão.
Acontece que não está nos elementos externos -por mais que o próprio Shepard, autor da peça, insista na importância dos detalhes- a qualidade, empolgante até, da montagem.
Ator, um dos principais de sua geração, Ricca conduz interpretações absolutamente inesperadas de Otávio Mueller, que faz Lee, o irmão mais velho, e Fábio Assunção, Austin, o mais novo.
Austin tem "trinta e poucos anos", uma jovem família, estável, de classe média, com formação universitária. Está cuidando da casa da mãe, que está em viagem -casa onde os irmãos cresceram, num subúrbio de Los Angeles, e onde ele agora finaliza o projeto de um roteiro de cinema.
Lee tem "quarenta e poucos anos", sem família, com roupa e aparência sujas, grosseiro. Surge na casa da mãe e passa a disputar com o irmão, com chantagens e golpes, a chance de vender um roteiro para o produtor Saul Kimmer (Oswaldo Mendes).
Na leitura de "Oeste", quando editada pela Paz e Terra, era impossível vislumbrar o que resultou afinal no palco, sob a direção de atores de Marco Ricca.
O que antes surgiu como um pesadelo realista, na tradição de "Longa Jornada Noite Adentro", por exemplo, do também americano Eugene O'Neill, com o conflito obsessivo e sem trégua, em família, com toques de crueldade, reaparece agora com nuances de solidariedade e afeto fraternais.
Uma opção consciente, o que é evidenciado na cena final, quando os irmãos encerram a apresentação abraçados -o que vai contra a indicação do autor, que pede "uma distância entre eles".
A distância entre eles já havia desaparecido bem antes, durante o espetáculo. A maior ação para tanto é, talvez, de Otávio Mueller, que alcança afinal a comicidade que buscou sem sucesso na farsa "Alô, Madame", ano passado.
Lee abre a peça agressivamente, ameaçador, mas aos poucos, com as pitadas de ingenuidade que vão sendo acrescentadas pelo ator, chegando em momentos a entrar pelo pastelão, ele se aproxima de Austin -e do espectador.
Passa a ser visto carinhosamente, não mais com temor, o que talvez desvirtue, novamente, parte dos propósitos do autor, que parece querer Lee como ameaça constante, como uma fonte de tensão intermitente sobre o cotidiano de Austin -e do espectador.
Por outro lado, no que tornou a montagem tão empolgante, para o crítico, é como se ela revelasse uma outra face, um outro Sam Shepard, desconhecido, inédito.
Não mais monocórdio, obsessivo, mas com diferenças de ritmo, confrontando a angústia com sinais de esperança e fraternidade, em novo conflito interno, estabelecido a cada cena. Em uma palavra, para seguir a época, romântico. Ou ainda, neo-romântico.
É certo que a opção tem um olho na bilheteria, que possivelmente suportaria algumas poucas semanas, o que não chega a ser incomum para o autor, em caso de nova montagem árida-como-o-deserto, ou coisa assim.
Mas, tanto quanto opção, este outro Sam Shepard também é resultado, resultado até inevitável, do elenco de "Oeste"; quem duvide, que atente para a breve passagem, para os poucos minutos de Etty Frazer em cena.
A atriz, fundadora do Oficina, com interpretações históricas no teatro, jamais construiria uma personagem da mãe no padrão seco e cruel das mães de Sam Shepard -padrão que alimentou incontáveis análises psicológicas, ao gosto da mistificação que cercou o autor por duas décadas.
(Mistificação, vale registrar, que desabou quando o próprio Sam Shepard escreveu e dirigiu, no fim dos anos 80, para grande frustração e fracasso de crítica, o filme "Far North", que nada tinha de seco e cruel, até pelo contrário, uma comédia romântica.)
Etty Frazer, em "Oeste", pode ser uma mãe inconsciente do conflito dos filhos, mas de modo algum é cruel ou seca. Leva carinho aos dois até quando pede para que não se matem. Acredita fantasiosamente que são crianças, meninos que brigam por tudo, não adultos invejosos e obcecados.
E o resultado é que são, de fato, crianças, com a violência própria de crianças. O que vale não apenas para o crescentemente infantil Lee de Otávio Mueller, mas também e talvez até mais para Austin de Fábio Assunção.
O ator, galã de televisão, o que é explorado com comedimento pela montagem, não tem uma interpretação fulgurante e chega a ser várias vezes eclipsado por Otávio Mueller, mas não compromete em momento algum -o que é uma surpresa, sendo esta, praticamente, a sua primeira peça.
Mais, define com bastante apuro um Austin inseguro, um irmão caçula que acompanha com orgulho e inveja o mais velho, a ponto de fantasiar até os seus fracassos em grandes aventuras.
Assim, quando troca de papel e passa a furtar eletrodomésticos, como o irmão, o que resulta não é a decadência, mas a alegria mais genuína, desajeitada, infantil de conseguir o mesmo que o mais velho.

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