São Paulo, domingo, 10 de março de 1996
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Depois da revolução

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Talvez a mais perigosa das miragens criadas pelo marxismo desenhe-se na convicção de seus adeptos, de que marcham à frente de uma história cujo destino, em linhas gerais, está previamente traçado. Resta apenas aos agentes esclarecidos precipitar as condições para a mudança e conduzir o processo político, de modo a levar a sociedade ao lugar aonde, já se sabia, deveria mesmo chegar.
Alguém que tenha frequentado a militância de esquerda conhece perfeitamente essa convicção e o quanto de onipotência e autoritarismo dela deriva.
O governo Fernando Henrique Cardoso não tem nada de marxista no sentido tradicional. Mas é um governo que pensa seu "processo" com uma cabeça formada pelo marxismo. É, formalmente, no seu modo de raciocinar e formular, "de esquerda".
Um governo que tem um líder esclarecido, que sabe perfeitamente para onde a sociedade deve caminhar, que sabe quais são os objetivos maiores e menores que deve perseguir e que tem a convicção de estar do lado certo da história.
Tal governo, então, do alto de sua racionalidade, correção e clareza, sente-se desembaraçado para recorrer a táticas e procedimentos muitas vezes retrógrados, obscuros e discutíveis, pressupondo que não será confundido com eles -são apenas circunstâncias, meios que o fim justifica.
Assim, se o governo promove uma aliança com o partido conservador da República e dá o braço a lideranças coronelescas, quer que a imprensa e os críticos compreendam que o acordo é fundamental para alcançar um objetivo maior.
Se cria uma mecanismo para cobrir o rombo de R$ 5 bilhões do Banco Nacional e sinaliza risco zero na área financeira, espera a compreensão de que a medida era indispensável para salvar o sistema e, novamente, o objetivo maior.
Se é negligente na fiscalização, se procura deixar na sombra fraudes do sistema bancário e tenta evitar uma CPI quando os problemas vêm à tona, deseja que todos façam coro com a "inconveniência" de uma investigação que poderá, mais uma vez, tumultuar o objetivo maior, chatear banqueiros e intranquilizar gordos investidores estrangeiros.
Brasília, com a valorosa ajuda de suas patrulhas iluministas, parece pretender unicamente ser julgada, ou melhor, aplaudida, por sua "essência", que não deve ser confundida com seus atos, e pelo seu sempre lembrado objetivo maior, a moeda estável.
O Real, no discurso do Planalto, parece substituir o "caminho do socialismo" no discurso do militante de esquerda.
Tudo se justifica para preservá-lo, uma vez que tudo é cálculo, tudo é feito com racionalidade e distanciamento: o mal é uma tática acidental que serve para preservar o bem essencial.
O resto vem depois da revolução.

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