São Paulo, domingo, 10 de março de 1996
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A autonomia em questão

EUNICE RIBEIRO DURHAM

Proposta do governo que propõe alteração do artigo 207 da Constituição vem encontrando enorme resistência. O artigo diz que as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
A proposta de emenda só acrescenta a expressão "na forma da lei". Isso está sendo interpretado como tentativa do governo de diminuir a autonomia que a Constituição garante às universidades. Argumenta-se como se o art. 207 fosse auto-aplicável e como se as universidades, em virtude disso, gozassem de fato de uma autonomia que a lei cercearia.
Não é isso que ocorre, ou, pelo menos, com as universidades públicas (com exceção das estaduais paulistas). Em virtude de outras determinações da própria Constituição e de uma legislação anterior que se manteve, a autonomia das universidades federais, por exemplo, não é muito maior que qualquer órgão da administração direta, e estes não possuem nenhuma.
As universidades não podem contratar nem demitir pessoal, não estabelecem padrões de remuneração, não têm controle sobre o quadro de pessoal nem seu orçamento é rigidamente determinado pelo poder central. Por exemplo: se uma universidade quiser alterar um cargo, se houver excesso de motoristas e falta de técnicos de laboratório, a solução é solicitar ao presidente da República que envie um projeto de lei ao Congresso.
As universidades federais não gozam de autonomia porque não há uma lei que especifique em que, exatamente, ela consiste. A lei não está sendo proposta para retirar uma autonomia que as universidades públicas hoje gozam. Ao contrário, é necessária para lhes garantir uma autonomia que hoje não possuem. Mesmo as estaduais paulistas reivindicam uma lei que lhes assegure sua autonomia atual, porque, estando ela assegurada apenas por decreto, pode ser destruída a qualquer momento.
A lei também é necessária por outra razão, que diz respeito às universidades particulares. Hoje, apoiadas na Constituição, elas possuem muito mais que a autonomia prevista -gozam, na verdade, de soberania.
Atualmente uma instituição privada precisa preencher um mínimo de requisitos relativos à qualidade dos cursos para se transformar em universidade. Isso conseguido, adquire inteira soberania -cria o que quiser, onde quiser. Universidades privadas estão se transformando em McDonald's do ensino, abrindo cursos sem controle de qualidade pelo poder público.
É verdade que o art. 209 da Constituição diz que o ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: "1) Cumprimento das normas gerais da educação nacional; 2) autorização e avaliação de qualidade pelo poder público".
Mas suponhamos que uma universidade localizada numa capital abra, no interior, um curso de engenharia com 500 vagas. O poder público pode fazer uma avaliação e considerá-lo de péssima qualidade. Mas pode fechá-lo? Hoje, quando o MEC tenta agir nesse sentido, elas apelam para a Justiça e ganham a causa.
Se a Constituição não estabelecer que a autonomia será regulamentada pela lei, qualquer interferência numa universidade privada, por mais que se justifique em termos de garantir uma qualidade mínima para os cursos, ficará na dependência de uma luta na Justiça. O art. 207 precisa ser regulamentado e compatibilizado com o art. 209. A lei deve fazer isso.
Há ainda um outro problema que está na raiz de todos os demais e que reside na resposta à pergunta: por que, no mundo todo, se defende a autonomia das universidades? É para lhes garantir a liberdade de crítica e a livre manifestação do pensamento, protegendo-as de interferências espúrias do poder político e econômico.
O sujeito da autonomia, assim, consiste basicamente no corpo de professores e, secundariamente, no corpo discente. Mas, inexistindo uma lei que defina o sujeito da autonomia, no caso das universidades privadas, ela acaba concentrada na mantenedora.
Não existe uma lei que distinga claramente o que é a autonomia de uma face à outra. Dessa forma a liberdade acadêmica (que existe nas universidades públicas) desaparece nas universidades privadas.
Nestas muitas vezes é a mantenedora (ou o dono) que decide que cursos criar, quem contratar ou despedir, que matérias pode o docente lecionar e o que deve pesquisar. O poder econômico destrói a liberdade acadêmica e a autonomia da universidade se torna uma farsa, controlada que é pelos interesses do mercado.
Precisamos defender a autonomia das universidades, mas a autonomia verdadeira, a da comunidade acadêmica, que não é soberania e está subordinada aos interesses maiores do ensino, da pesquisa e da extensão. É por isso que a autonomia só pode ser exercida na forma da lei.

Eunice R. Durham, antropóloga, é secretária de Política Educacional do Ministério da Educação e do Desporto e professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo).

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