São Paulo, terça-feira, 12 de março de 1996 |
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A crise brasileira tem mil e uma utilidades
ARNALDO JABOR
A crise dá ao político uma "allure" de urgência, uma sensação de utilidade. A crise é estimulante para deputados e senadores. Dá a impressão de que eles trabalham. A crise gera uma espécie de meta-trabalho, um tremelique que parece esforço. A crise parece história, mas é só estoria. A crise dá às oposições um charme de grandeza. Transforma oportunistas em heróis. Dentro de uma crise, políticos como Paulo Paim e Jandira Feghalli tem seus 15 minutos de fama. A crise é a valentia dos covardes. A crise é boa para a música. Faz revoluções musicais; transforma o Hino Nacional no "Vira Vira". A crise é ágil; parece filme de ação. A paz é chata; parece filme francês. A crise tem cenas explicitas de luta, como ACM socando o Suassuna. A crise tem frisson, tem suspense. A paz não. A crise une. Une o PC do B com o PPB; PT à UDR, burocratas e assaltantes, picaretas e ingênuos. A crise é mágica; transforma esquerda em direita e direita em mais direita. Ou melhor, mostra que atrás de um "progressista" há um reacionário. A paz denuncia a inutilidade de falsos revolucionários. Ou seja, a paz provoca crise de identidade na esquerda burra. Com a crise, eles florescem. A crise é também uma adrenalina nas amebas como Euler Ribeiro. Eles são obrigados a fingir que fazem política. A crise faz os inúteis existirem, como o Antonio Valadares que só nasceu como colhedor de assinaturas. A crise permite discursos inflamados, rostos afogueados, bigodes em delírio, o que é bom para a proximidade das eleições. Com a crise, a vida fica mais excitante. A crise é um "thriller". A crise tem também uma grande serventia: limpar canalhas. O sujeito está sujo como pau de galinheiro. Aí, vem a crise, o sujeito sobre a tribuna, pede providências, cerra o punho, denuncia o governo e desce limpinho, com a cara grave dos honrados. Até o Quércia denuncia as fraudes bancárias, atrás do bigodinho do Paes de Andrade. A crise é Omo; lava mais branco. A crise lava as pessoas como as Bahamas lavam dinheiro. A crise é boa também para ex-presidentes, pois passam à História como bons governantes. O povo tem amnesia. A crise é boa para delinear fisionomias e caracteres. O bigode do Sarney por exemplo avulta com uma nitidez nova. Toda a arquitetura de sua vaidade vem à tona. A crise é o marimbondo da vaidade ferida. O bigode é mais importante que o interesse nacional. O bigode é mais importante que a fome do Maranhão. O marimbondo faz cair as bolsas e o prestígio externo do país. Não faz mal; isto é filosoficamente profundo. Demonstra a fatuidade da vida humana, como o micro e o macro se articulam. Bigode do Sarney = futuro do Brasil. A crise mostra que jamais sairemos da literatura regional. A crise portanto é uma aula de anatomia fisiognomica. Podemos ver a cara e o sorriso de hiena de Jair Soares, o ovo cabeludo do Paim, o desengonço da Feghalli, a alma de Chagas Freitas em Miro. A crise faz milagres; ressucita múmias como Brizola, o vice, o "placé" do Eneas. A crise é boa porque também provoca agressividade em FHC, acabando com seu sorriso messiânico, com o bonapartismo cordial. A crise mostra que, sem opinião pública, não há reformas. A crise é útil porque pode despertar a famosa sociedade civil, que ninguém sabe onde está. Onde está a sociedade civil? Vendo televisão, na Europa, jogando bingo? A crise é a nostalgia da inflação. Ah.. que saudades do "float", ahhh que saudades dos 80% ao mês, de comprar a prazo e vender à vista, das remessas ilegais, das "bicicletas" bancárias. A crise é saudade. Como metáfora maior, a crise pode ser um "esrsatz" para a idéia de revolução. Já que a antiga esquerda não conseguiu fazer revolução, faz a contra-revolução. A crise é boa para conhecermos as regiões culturais do Brasil. Os políticos de toda a parte saem das tocas e assim, conhecemos o secular escravismo dos nordestinos egoístas, o machismo sulista caudilhista e populista, a secura dos tecnocratas paulistas, a malandragem oculta dos mineiros, índios da zona franca, pantaneiros corruptos, sindicalistas emergentes e deslumbrados, suplentes milionários, em suma, um painel cultural do país. A crise é uma boa aula de antropologia. A continuar, a crise pode ser incorporada e virar uma atração turística, uma marca nacional. Os USA tem o urso cinzento, a França a torre Eiffel, nós temos a crise permanente, o destino-pastelão. A última crise é iluminista ao contrário. A luz da razão é tudo que não está lá. A crise mostra que Stálin não morreu, nem Goya. Crise também é cultura. Filosoficamente, a crise é a mímica histérica do caos. Ninguém conhece o caos; só os miseráveis. A crise finge temer o caos, mas trai um desejo de conhecê-lo. A crise também é boa para justificar brochadas: "Minha filha, desculpe... isto nunca me aconteceu; é a crise.." A crise é sexual. A crise é da fase anal. O país ainda não chegou à fase genital. Só no carnaval. Durante o resto do ano, a crise pode ser diarréia ou prisão de ventre. Nos dois casos, a crise é uma merda. Texto Anterior: Sting mistura jazz e country em novo CD Próximo Texto: Sinfônica de Berlim toca domingo em SP Índice |
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