São Paulo, quarta-feira, 13 de março de 1996
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Gravata do Pato Donald é uma lição de ironia

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O senador Ney Suassuna (PMDB-PB) causou certa sensação nos meios políticos ao usar uma gravata vermelha com estampa de Pato Donald, no dia em que o presidente do Banco Central dava depoimento ao Congresso. Reportagem de Daniela Pinheiro, na Folha de segunda-feira, aprofundou o tema. Ney Suassuna tem uma enorme coleção de gravatas, todas com motivos Disney.
Não é apenas o rosto em close de um Donald enraivecido sobre fundo vermelho; há outra com uma multidão de Mickeys sorridentes, outra com os simpáticos dálmatas, outra ainda com fotogramas de um difícil jogo de tênis protagonizado pelo Snoopy de Charles Schulz.
O jovem deputado Lindbergh Farias (PC do B- RJ) considerou ridículo o gosto de Ney Suassuna. Tento fazer uma pequena defesa do senador paraibano.
Por definição, não existe ridículo voluntário. O fato de escolher uma gravata "ridícula" não pode ser ridículo, se quem escolhe sabe perfeitamente que aquela gravata é ridícula. O senador Suassuna não parece ser um fanático das produções Disney; nem se julgou, certamente, mais respeitável como senador ao amarrar aquilo no pescoço. Sua atitude não é ridícula, é irônica.
Mas como entender essa ironia? Daniela Pinheiro informa que a moda de gravatas Disney não é nova: começou com os yuppies dos anos 80. A partir daí podemos ver as coisas com mais clareza.
Os yuppies eram pessoas recém-saídas da adolescência, que arranjaram emprego nas Bolsas de Valores americanas, nos bancos de investimentos do primeiro mundo, e que de repente enriqueciam com total facilidade. Era tão fácil como para o tio Patinhas. Havia um aspecto de jogo, de brincadeira, em manipular milhões de dólares numa tela de computador.
No capitalismo contemporâneo, decisões de investimento e retiradas de capital ganharam a aparência abstrata de alguns bits numa tela fosforescente. Um amigo brinca: o desemprego, a infelicidade de milhares de famílias na Tailândia depende de alguns toques no teclado, que ordenam uma transferência de dinheiro: vendam-se títulos de compra de arroz do Sudeste Asiático, comprem-se opções de venda de diamantes em Roterdã.
Tudo ganha assim uma irrealidade extrema, onde, ao que parece, o volume de títulos negociados é muitas vezes maior do que o volume de riqueza real, concreta, existente no planeta.
O mundo yuppie juntava, ou junta, duas percepções: a de uma adolescência individual, e a da fantasmagoria, da irrealidade, dos negócios em Wall Street. O adolescente aposenta o tênis e veste gravata; mas na gravata está impressa sua infantilidade, num rosto de Donald. Infantilidade que ele recusa ao mesmo tempo que expõe, numa inocência simbólica percebida como contraste com o pragmatismo vivido.
Pragmatismo que, por sua vez, é muito pouco "real", já que nenhuma decisão, nenhuma reviravolta do capital, encontra efeitos visíveis nessa casta de operadores de títulos. O drama do pequeno agricultor, exposto aos ventos do capital apátrida, não aparece para quem interrompe uma linha de investimento teclando alguns sinais no seu PC quase sempre obediente.
Voltando ao senador Suassuna. Não é um yuppie. Representa interesses regionais, nordestinos, contra a patópolis paulista. Eis que está usando gravatas Disney, como o yuppie que ele não é.
Há uma lição de ironia em sua atitude. Sabendo ser ridícula a atuação parlamentar, recusou-se, na aparência, às exaltações do discurso setentrional. Indignar-se, como faz sempre Antônio Carlos Magalhães, é que é ridículo e falso. O dedo em riste; a catilinária; o revólver; a troca de tapas-- que teatro! Que falsa indignação! Quanto ridículo!
A escritora Madame de Stael, nos começos do século 19, lamentava a falta de entusiasmo e de sinceridade na política. Cada vez que alguém afirma suas convicções, dizia ela, perguntamos quais os interesses que essa pessoa defende.
"Defender os interesses" deste ou daquele grupo social, no século 20, já virou atividade nobilitante para qualquer ação política. A esquerda começou a perder o jogo quando se mostrava legítima defensora dos interesses do proletariado -quando devia ser, a julgar pelo que Marx dizia, defensora da humanidade contra a barbárie.
Eis que surge o senador Suassuna, expressando descontentamento não aos gritos, ou também aos gritos, mas sobretudo com sua gravata de Pato Donald enraivecido. É o protesto silencioso, inútil como todos os grasnidos de Donald, eloquente como a tanga de Gabeira nos anos 80. Símbolo e denúncia da vacuidade da ação parlamentar, ato de sublime ironia contra a própria farsa em que se transforma o Legislativo, reduzido a sua dimensão de Patópolis enquanto o Banco Central e a presidência da República cuidam de assuntos mais sérios, por meio de medidas provisórias.
Ou não cuidam; FHC viaja e sorri; algum yuppie, com a mesma gravata de Suassuna, governa o Brasil no seu lugar.

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