São Paulo, quarta-feira, 13 de março de 1996
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"Kids" funciona como um soco didático

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O filme "Kids", agora em vídeo, devia constar de uma lista de atividades obrigatórias para a educação de pais e filhos das sociedades dos centros urbanos contemporâneos.
O material funciona como uma espécie de soco didático no estômago de pais ausentes ou perdidos no que se refere à orientação de seus filhos adolescentes.
E talvez funcione para os filhos como um antídoto contra a constante ameaça de delinquência que ronda suas vidas nessa fase cuja instabilidade e confusão são, em grande parte, fruto da sociedade capitalista incapaz de absorver o jovem em sua dinâmica da produtividade.
"Kids" narra o cotidiano de um grupo de adolescentes americanos na sua mais flagrante falta de perspectivas e responsabilidade. Nada acontece no dia da dupla de adolescentes vividos pelos atores Leo Fitzpatrick e Justin Pierce que não overdoses consecutivas de sexo compulsivo, bebida, drogas e pequenos atos fora-da-lei.
O protagonista Terry (Fitzpatrick), um desengonçado garoto de 16 anos que só pensa em fazer sexo -já contaminado pelo vírus da Aids, mas sem ter conhecimento disso-, ocupa a maior parte do seu tempo em busca da próxima garota que irá desvirginar.
Sua fixação por virgens é quase que o último fio de sagrado a que ele se agarra para dar sentido ao vazio de sua vida.
O que Terry -versão adolescente do vampiro que vai espalhando a desgraça por onde passa- divide com seu melhor amigo e seu grupo, um bando de skatistas vadios aglomerados numa praça de Nova York, é gibi, uísque roubado com muita displicência na loja da esquina e droga adquirida facilmente com o traficante da esquina.
É interessante notar também que, no mundo de "Kids", meninos e meninas vivem separados, reproduzindo os mesmos padrões moralistas do comportamento de seus pais. É como se entre rapazes e moças não houvesse comunicação -apenas contaminação, por drogas, por bebida, pelo vírus da Aids, verdadeiro fio dramático do filme.
As meninas, mais consistentes na expressão de suas experiências e de suas angústias na relação com os rapazes, relatam detalhes certamente surpreendentes (para pais) de sua vivência sexual. As descrições conseguem ser mais cruas do que a dos meninos, como, por exemplo, na narrativa da menina que confessa às amigas já ter engolido esperma ("mistura de farinha doce com manteiga salgada").
Um dos maiores méritos do filme é a câmera em constante movimento, acompanhando o ritmo incansável dos garotos, a busca vã, a procura sem objetivo definido.
O impressionante é que os jovens de "Kids" não são meninos de rua, são de classe média, têm casa e comida, pai e mãe, embora ausentes. Talvez seja filme para pais assistirem, mais do que para filhos -retrato fatal, enfim, do que a omissão dos pais pode acarretar para a vida de toda uma geração que perambula hoje pelas ruas.
"Kids" é dirigido pelo fotógrafo americano Larry Clark. Aficionado por adolescentes e drogados, Clark já tinha desenvolvido trabalhos fotográficos com uns e outros. Para o projeto de "Kids", Clark pesquisou um grupo de adolescentes skatistas das ruas de Nova York.
Entre eles, conheceu Harmony Korine, o garoto de 19 anos que escreveu o roteiro de "Kids" e reuniu um grupo de amigos para atuar como atores. Ou seja: "Kids" é real.

Vídeo: Kids
Direção: Larry Clark
Elenco: Leo Fitzpatrick, Sarah Henderson, Justin Pierce, Chloe Sevigny, Harold Hunter, Rosario Dawson
Distribuição: PlayArte (tel. 011/575-6996)

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