São Paulo, quarta-feira, 13 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Transferência de renda

ANTONIO DELFIM NETTO

A abertura da economia, a sobrevalorização cambial e a manipulação das tarifas alfandegárias produzem importantes efeitos distributivos, que ajudam a compreender por que os consumidores (pelo menos os que estão empregados) tendem a apoiar certas políticas econômicas mesmo quando elas são insustentáveis no longo prazo.
Essa espécie de miopia anestesiante tem aspectos positivos porque permite ao governo apresentar resultados imediatos que criam as condições políticas para realizar as reformas necessárias.
O caminho fácil de reduzir a inflação pela fixação do câmbio pode ser, assim, um movimento de ilusão que anestesia o alegre consumidor, enquanto se realiza a dolorosa operação de construir o equilíbrio interno e externo.
Tomemos, por exemplo, o setor eletrônico, atacado diretamente pela penetração de bens finais importados à custa de: 1) uma taxa de câmbio sobrevalorizada; 2) uma redução tarifária que atingia os bens finais e 3) financiamento externo das importações a taxas de juros cinco ou seis vezes menores do que as nacionais e por prazos internamente impensáveis de 9 ou 12 meses.
Em pouco tempo ficou claro que o setor seria esmagado pela concorrência desleal que lhe estava sendo imposta. A resposta do governo foi um dramático aumento das tarifas dos bens finais, mas a manutenção das condições na importação dos bens intermediários, produzindo um escandaloso aumento das tarifas efetivas.
E a resposta da indústria não poderia ser outra: passou a importar os bens intermediários, graças a que aumentou sua oferta, reduziu seus preços finais e melhorou seus lucros. Ela luta agora para conservar por mais tempo a razoável proteção tarifária.
O problema é que a produção física do setor de bens finais aumentou, mas o valor adicionado caiu. O setor intermediário reduziu seu nível de produção e de emprego substituído pela importação. Os consumidores puderam beneficiar-se da redução dos preços.
Na verdade o que aconteceu foi uma transferência de renda produzida pela manipulação arbitrária de câmbio e tarifas. A taxa de câmbio sobrevalorizada significa, em última análise, uma tributação direta sobre o setor exportador transferida para o setor importador, principalmente os importadores urbanos.
O déficit em conta corrente significa que os poupadores estrangeiros financiam, indiretamente, um aumento da renda dos consumidores nacionais e o déficit do governo.
É possível entender por que esse processo tem o apoio decidido da sociedade (pelo menos dos que não perderam o emprego). Ele significa uma transferência maciça da "renda dos produtores" para os consumidores, o que gera o apoio da mídia urbana e votos no curto prazo.
Mas é evidente que tal transferência tem limites. Basta ver que em 1995 uma boa parte da tal "âncora verde" (a redução dos preços dos alimentos) foi feita à custa da destruição de parte do capital do setor agrícola, que é finito.
O apoio importante a essas medidas vem dos setores produtores de bens finais (automobilístico, eletrônico) que, graças ao seu poder vocal, conseguiram fantásticas tarifas efetivas para seus produtos, o que lhes permitiu aumentar a produção, baixar ligeiramente os preços e aumentar substancialmente os lucros e o desemprego...
E, a pouco e pouco, atraídos pelos juros mais convenientes, vão financiando os consumidores com empréstimos externos.

Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Ordem social e justiça
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.