São Paulo, quarta-feira, 13 de março de 1996
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Ordem social e justiça

HÉLIO BICUDO

Diante da maneira quase estática com que o governo brasileiro vem tratando a questão da terra, manipulando números para demonstrar algo inexistente de metas só atingidas nas estatísticas, o Movimento dos Sem Terra promoveu uma série de atividades na linha da ocupação de terras ociosas mais para forçar uma política realista, com o objetivo maior de alcançar uma reforma agrária capaz de atender aos reclamos de extensas levas da população, empobrecida e marginalizada como consequência de desmandos há tanto tempo acalentados pelas elites dirigentes e que, a pouco e pouco, vão surgindo aos olhos de todos, com as fraudes que criaram fortunas à custa do povo, como aconteceu na distribuição leviana do dinheiro público para alimentar bancos falidos que usaram de fraude para o benefício de seus donos.
Pois bem, o paralelo aí está, para aqueles que desejam ver: enquanto os crimes do colarinho branco continuam impunes -de lembrar-se que até agora os delitos apontados pela CPI do Orçamento permanecem sem solução- trancafia-se nos xadrezes tantos quantos ousam desafiar a "ordem", na tentativa de construir uma nova ordem social, mais justa e, porque mais justa, mais fraterna.
É o que está acontecendo com Diolinda e outras lideranças do Movimento Sem Terra recolhidos à prisão numa interpretação equivocada dessas mesmas leis, elaboradas tão-somente para a manutenção do status quo, desconhecendo que na sua interpretação não se pode esquecer do conteúdo social que está no seu âmago, adaptando-a à conjuntura de tempos novos.
Não basta, para convalidar a decretação de uma prisão que se constitui num retrocesso ao tempo em que se considerava a questão social um caso de polícia, a citação de uma dúzia de penalistas onde processualistas que apontam, apenas, para o vazio de uma conclusão sobre fatos de que não participaram, da vida de uma sociedade em transformação. Antigo e ilustre membro do Ministério Público paulista, nos entreveros do Tribunal do Júri de então, perguntava o eminente advogado que despejava sua sabedoria na citação de autores consagrados se estavam eles no bar onde o crime fora cometido. Mais valia, afirmava, o testemunho do dono do bar, ao descrever o crime e sua autoria...
Na consideração do problema fundiário não se pode, simplesmente, fazer uma abordagem técnico-jurídica, pretendendo, com semelhante procedimento, fazer justiça.
Ora, "summum jus, suma injúria". Hoje, o conceito de justiça não se pode apartar do conceito de solidariedade ou fraternidade, fomento que deve levedar todas as atividades humanas, para o aperfeiçoamento do conjunto da sociedade.
Não basta, para o recolhimento de uma pessoa à prisão, dizer-se que a ordem pública está ou foi extremamente abalada. Que ordem pública? Essa "ordem" que oprime e exclui? Mas essa não pode, evidentemente, ser considerada ordem pública, porque contém em si o contrário: a desordem. Como falar-se em ordem pública quando não se busca a construção de uma política voltada para o estabelecimento dessa mesma ordem pública?
Poder-se-á afirmar que a Justiça aí está para mediar as dificuldades ocorrentes nos traumas de uma sociedade que pretende alcançar as metas de um desenvolvimento equilibrado. Mas é por isso mesmo que a letra da lei, mormente quando se trata de leis envelhecidas, não pode ser o único paradigma para as decisões de seus juízes. Hão eles -os juízes- de extrair da lei antiga o seu fundamento maior e isso só se pode alcançar confrontando-se a norma legal com a conjuntura.
Caso contrário, voltamos à consideração -o que é inadmissível- de que a questão social resolve-se com patas de cavalos.

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