São Paulo, quarta-feira, 13 de março de 1996
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É proibido pensar

CARLOS ALBERTO IDOETA

Não podemos ignorar o que acontece com um quinto da humanidade.
Abusos em larga escala não são punidos. A tortura é endêmica, dissidentes são perseguidos e executados, minorias étnicas e religiosas são sufocadas. Corrupção é moeda corrente. A pena de morte mata mais do que em todo o resto do mundo junto.
Na "ditadura do proletariado" o trabalhador só pode se filiar à única central sindical permitida, a oficial. Quem arriscou o sindicalismo independente foi preso. O Legislativo tem pouco poder, o Judiciário permanece sob a influência do partido único. A abertura econômica não alcança a cooperação internacional em direitos humanos, matéria de "soberania nacional" para um governo que os despreza.
Os pobres são mais vulneráveis à tortura, e entre as vítimas estão idosos e crianças. Muitos morrem das sequelas. Salvaguardas não são adotadas, torturadores não são punidos. As formas mais comuns incluem espancamentos, açoitamentos, pendura e choques. Os cassetetes elétricos foram importados de uma empresa britânica um ano depois do massacre na Praça da Paz Celestial, em uma iniciativa patrocinada pelo governo de sua majestade. Podem ser usados nas axilas, sola dos pés, boca e órgãos genitais.
Para o código penal de 1980 são "contra-revolucionários" todos os atos "cometidos com o propósito de derrubar o poder político da ditadura do proletariado e do sistema socialista". A pena pode até ser a morte. Também a legislação do "segredo de Estado" é usada arbitrariamente.
Contam-se aos milhares os presos políticos, entre eles muitos jornalistas, por "vazamento" de segredos. A lei de segurança do Estado de 1993, regulamentada em 1994, restringe os direitos de expressão, publicação, associação e religião.
A polícia pode deter qualquer pessoa por até três meses sem acusação. A "reeducação pelo trabalho" é imposta sem acusação ou julgamento por um período de até três anos, renovável por mais um ano, para os pequenos criminosos, para os "vândalos" ou os que tenham "opiniões anti-socialistas".
Alguns grupos religiosos são mais iguais que outros. Os cristãos têm liberdade de culto nas igrejas autorizadas, mas podem ser perseguidos, torturados ou mortos se se juntarem a grupos não-reconhecidos pelo governo. O budismo e o islamismo são tratados como auxiliares dos movimentos pela independência do Tibete e de Xinjiang. Lobsang Tsondru, monge budista de mais de 80 anos, cumpre seis anos de prisão por "envolvimento em atividades ilegais". Leis e normas proíbem a expressão pacífica das aspirações nacionais, religiosas e culturais das 56 nacionalidades que totalizam 81 milhões de pessoas. Na região autônoma do Tibete, milhares foram presos e muitos torturados e mortos desde a retomada do movimento separatista em 1987.
O planejamento familiar é "voluntário", mas o controle de natalidade é obrigatório desde 1979. A meta de estabilidade demográfica em torno de 1,3 bilhão de habitantes no ano 2000 impõe alguns cuidados: mulheres grávidas fora do plano são sequestradas e forçadas a abortar e a se esterilizar, médicos são pressionados pelas autoridades a matar os recém-nascidos fora da "quota", os casais recalcitrantes têm sua casa demolida. O uso intenso da pena de morte pretende instilar medo e acabar com o crime. Não consegue. Erros judiciários não preocupam. Os condenados permanecem acorrentados, não têm acesso a advogados e sua correspondência é censurada. Há 68 crimes puníveis com a morte, entre eles envenenar gado e matar tigres. O estreito vínculo entre os tribunais e as autoridades de saúde, o sigilo que cerca o processo e a receita gerada pelos hospitais sugerem que em alguns casos a execução pode ser apressada para a obtenção de órgãos para transplante.
A Anistia Internacional apresenta ao governo da República Popular da China um conjunto de recomendações. Queremos a apuração das responsabilidades pelas violações, o fim da impunidade, a adoção de salvaguardas contra a tortura e os maus-tratos, o fim das detenções arbitrárias e das farsas judiciárias, a abolição da pena de morte, a proteção dos militantes de direitos humanos, a ratificação dos tratados internacionais e a cooperação com a ONU.
Queremos o fim do arbítrio no maior país do mundo. Haverá reservas de indignação entre os que lêem este artigo. Proteste, leitor, junto às autoridades chinesas em Pequim ou à embaixada em Brasília. Exija mudanças em nome das vítimas. Escreva também para o presidente Fernando Henrique e o Itamaraty pedindo que o Brasil cuide desse outro negócio da China. Lembre-os da responsabilidade internacional pela proteção da pessoa, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamou em 1948. Lembre-os das vidas humanas pulsando em cada mercado.

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