São Paulo, quinta-feira, 14 de março de 1996
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Último ano do prazer

MOACYR SCLIAR

- Essa história de que o paulistano tem um ano de prazer a cada oito é absolutamente verdadeira -disse a senhora. - Posso confirmar com minha experiência pessoal.
Ficou pensando um instante e contou:
- Meu primeiro ano de prazer começou com o nascimento. Eu era uma criança feliz, alegre, sorridente. Veja esta foto: aí estou, gorduchinha, com um mês de idade.
Suspirou:
- Mal sabia eu o que me aguardava: sete anos de legítimas vacas magras. Magérrimas. No dia do meu primeiro aniversário, meu pai abandonou a família e nunca mais deu notícias. Minha mãe teve de prover o sustento da família, quatro crianças e mais a tia dela. Foram anos de cão, meu senhor. Anos de cão. Mas aí, no meu oitavo aniversário, tudo mudou: minha mãe ganhou na loteria, nós nos mudamos para uma casa melhor e passamos a viver bem. Por um ano. Foi o tempo que durou a grana.
Suspirou de novo:
- Daí em diante, eu sabia que meu destino estava traçado, a cada oito anos, um ano de alegria. Aos dezesseis, me apaixonei por um rapaz da vizinhança, um garoto bonito, inteligente. Fui correspondida, e durante um ano vivi no paraíso -mas aí ele se mudou para o exterior e nunca mais o vi. Fiquei tão frustrada que resolvi não namorar mais ninguém. De novo, passaram-se sete anos -sete anos de verdadeira clausura: eu não saía, não tinha amigos, ficava em casa estudando. Mas então, aos vinte e quatro anos conheci um senhor muito distinto Não era paixão, mas quando ele me propôs casamento, aceitei. Vivemos trezentos e sessenta e cinco dias de intensa felicidade -mas aí o pobre coitado teve um derrame e morreu. Sete anos de tristezas -e aos trinta e dois casei de novo, e de novo tive um ano de alegria, mas aí meu marido começou a beber... Aos quarenta anos, uma satisfação: separei-me dele e vivi doze meses de completa felicidade. Mas nada é perfeito, não é mesmo? Porque aos quarenta e oito anos casei mais uma vez, desta vez com um cafajeste que depois de um ano fugiu, levando todas as minhas economias -em dólar, naquela época. Agora, sete anos depois, sinto que começa o ano de minha felicidade, mas -
Interrompeu-se. Hesitou um pouco, depois continuou:
- Tenho medo. É que agora sofro de pressão alta, sabe? E tenho medo de morrer de uma hora para outra -antes mesmo de terminar esse ano feliz. O que seria injustiça.
Pensou um pouco, sorriu:
- Ou talvez não. Morrer em plena felicidade, isso não vale um ano? Vale, sim. Vale toda a eternidade.

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