São Paulo, quinta-feira, 14 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Jenipapo

OTAVIO FRIAS FILHO

Existe um novíssimo cinema brasileiro; a indicação de "O Quatrilho" para o Oscar de melhor filme estrangeiro é o aspecto mais noticiável desse fenômeno. Collor impôs uma política de terra arrasada para o setor. Ao zerar as relações entre Estado e cinema, ele abriu uma ruptura entre passado e futuro que libertou os novos cineastas.
O que distingue esses realizadores? Antes de mais nada, o ponto de vista que adotam é externo. "Carlota Joaquina" é narrado como se fosse uma fábula escocesa para crianças, "Terra Estrangeira" é a obra-prima que Wim Wenders faria com um assunto nacional, o filme de Fábio Barreto é pasteurizado o bastante para disputar um Oscar.
Houve uma inversão do paradigma. Nossos filmes mais importantes exploravam um conflito universal, tipo imperialismo contra nacionalismo, sob o prisma brasileiro. Agora eles traduzem o conteúdo nativo, sempre conflituoso, para uma linguagem de curso internacional. São filmes estrangeiros feitos por brasileiros.
O cinema brasileiro se desnacionaliza, como observou Marcelo Coelho, aceita a globalização como inevitável e até melhora com ela. Fotografia e som atingiram um bom patamar de qualidade; a luz ainda é dura demais, os diálogos pouco fluentes, a câmera mais estática do que gostaríamos, mas a evolução do conjunto é não só evidente como rápida.
Chega a ser comovente assistir à maturação de um gênero que começa a atingir o estágio adulto, após uma adolescência tumultuária, às vezes brilhante, mas afinal perdida em descaminhos e dissipações. O cinema retoma a evolução destroçada pelo interregno glauberiano (60-70) no ponto exato em que a abandonou, imitando o cinema americano.
Presente em todas as obras da nova safra, essa tendência é explícita, dado o assunto, em "Jenipapo", o filme de estréia de Monique Gardenberg. Todo o pano de fundo da trama -o movimento dos sem-terra, a Igreja engajada, o Congresso conservador, a imprensa abusiva- é profundamente brasileiro e no entanto nos perguntamos que Brasil é esse.
O Brasil de Gardenberg é um país agrário, uma espécie de Guatemala onde um padre misterioso, estrangeiro e semiclandestino, é o líder nacional da oposição. Ora, esse é o Brasil de Idaho ou Wyoming: um cenário exótico qualquer, vagamente hispânico, onde os heróis americanos enfrentam corruptos, capangas e ninfomaníacas.
Assim como os personagens vão e voltam do português para o inglês, o filme ricocheteia entre a consciência americana e o estereótipo latino, feito de militantes bonzinhos e senadores malvados. A revelação sexual do desfecho mostra que a diretora não poupou esforços para pôr a máquina do politicamente correto a seu serviço.
Não existe o "Brazilian Tribune", nem um partido com o nome de Liberal-Democrático: o país de "Jenipapo" é um Brasil virtual. É admirável que um filme brasileiro se disponha a competir pelas atenções do agricultor de Wyoming. A dúvida é saber quanto vamos pagar, em originalidade, pelo aluguel desse smoking para a Grande Noite.

Texto Anterior: Praça Otto
Próximo Texto: ATAQUE; BOBAGEM AMÁVEL; FÓRMULA MÁGICA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.