São Paulo, quinta-feira, 14 de março de 1996
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Cade: o dilema da social-democracia

FABIO FELDMANN

Notícias recentes revelam um movimento no governo federal para promover mudanças na lei 8.884, de junho/1994 (Lei Antitruste), e, mais grave, introduzir no mercado nacional de cargos o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
As modificações visariam facilitar fusões empresariais, com a finalidade de dar maior competitividade aos produtos e às empresas nacionais, pois estas estariam sendo prejudicadas pela atuação do Cade.
A elaboração da lei 8.884/94 foi encarada na época como um instrumento privilegiado para internalizar na sociedade brasileira a idéia da livre concorrência. Foi criada para se opor ao capitalismo de senzala, praticado por setores empresariais acostumados ao cartorialismo, logo, contrários à livre concorrência.
Essa aversão à concorrência se fez presente em toda a discussão da lei. Esta, à época de sua edição, foi batizada de "stalinista" por esses setores, em que pese existir legislação antitruste nos EUA desde 1890. Incomodados por bafejos de real capitalismo, em que quem não tem competência não se estabelece, formulam críticas com argumentos cínicos, que embora não convençam criam um clima emocional que distorce a realidade.
Pois bem, se cabem críticas, estas se inserem muito mais na questão da falta de fortalecimento real e institucional do Cade e não para atacar a sua autonomia e independência, requisitos absolutamente essenciais ao enfrentamento com os interesses dos grandes grupos econômicos.
Por outro lado é preciso registrar a desatenção da sociedade civil organizada em relação a um tema tão importante, negligenciando-se a necessidade de instituições públicas fortes de proteção do mercado e do consumidor, especialmente face ao fenômeno da globalização da economia.
A globalização da economia, ao contrário do que muitos ingenuamente pensam, exige dos Estados-nação -no campo interno- uma ação estratégica no controle do abuso do poder econômico. No contexto internacional há a necessidade de soluções criativas em âmbito institucional, quebrando a inércia e o imobilismo constante nas agências intergovernamentais das Nações Unidas.
Trata-se de um tema extremamente complexo, de uma dinâmica global, com uma interface inegável com o tema da competitividade, e que deve constar necessariamente da agenda nacional e internacional do governo e da sociedade.
O tema parece um filme antigo, daqueles tipo B, pois ganhou destaque nos EUA nos anos 80, quando o então presidente Reagan pretendeu reduzir a ação das agências americanas na aplicação da legislação daquele país, tendo, como suporte intelectual, os economistas da Escola de Chicago.
Como é sabido, essa linha de pensamento defende com intransigência a idéia do mercado como regulador ótimo da sociedade, prescindindo a mesma do poder público para proteger o consumidor. Se essa linha de pensamento não foi bem-sucedida no país exemplo maior do capitalismo, o que dizer da possibilidade de dar certo no país do capitalismo de senzala?
Essa discussão no Brasil, aliás, está intimamente ligada ao processo de privatização de importantes setores da economia nacional, porque parece inevitável submetê-los ao contexto do livre mercado, livrando o contribuinte do ônus do corporativismo e outras mazelas conhecidas.
Há que se adotar todos os cuidados para não criar infortúnios maiores para os consumidores dos bens e serviços das empresas privatizáveis, com todas as consequências daí advindas, inclusive na formação de preços.
Certamente está o governo diante de mais uma encruzilhada difícil, na qual o discurso social-democrata deve fazer sentido na escolha de opções que de fato viabilizem o ingresso do país na democracia contemporânea, em vez de reforçar a sobrevida de práticas do capitalismo de senzala, associadas, neste momento, ao paroquialismo de políticos que não entendem a importância das estratégias relativas ao abuso do poder econômico. Ou entendem demais de financiamento de campanha em época de eleições.

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