São Paulo, sábado, 16 de março de 1996
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Uma economia do absurdo

RUBENS RICUPERO

Três notícias recentes nos obrigam a repensar o estranho e não tão admirável mundo novo que vai tomando forma sob nossos olhos.
Em Nova York a Bolsa tem uma queda de 171 pontos, a maior desde 1991, como reação a um fato inesperadamente bom demais: a economia criou o dobro de empregados previstos e o desemprego despencou!
Nos mesmos Estados Unidos, a AT&T, dois meses após anunciar a eliminação de 40 mil empregos, revela ter pago ao seu presidente a soma de US$ 16,2 milhões, apesar de quase não ter gerado lucros.
Na Suíça, a fusão de dois gigantes da indústria farmacêutica, que deve provocar a perda de 13 mil empregos, foi primeiro comunicada aos mercados financeiros e só depois aos funcionários.
O traço comum dessas três histórias é a lógica perversa de uma economia que aparentemente perdeu toda consciência social.
No primeiro caso, os "bem-pensantes" de plantão logo arriscaram a exegese tranquilizante.
Os mercados temeram que a geração de empregos fosse indício de pressões inflacionárias. Em consequência, já não poderiam contar com a ação do Federal Reserve para continuar a reduzir a taxa de juros.
Outras opções passariam a ser mais atraentes que as ações. Daí o mergulho das cotações. Pode ser verdade mas não deixa de revelar um fato inquietante.
Em economias dominadas pela ditadura dos mercados financeiros, nem sempre o interesse dos aplicadores coincide com o da sociedade.
Para quem vive de rendas financeiras, a criação de empregos interessa menos do que uma inflação baixa que preserve o valor dos rendimentos.
Mesmo se a alternativa não se apresente de forma consciente, o crescimento baixo, desde que estável, é preferível, desse ponto de vista, à expansão de empregos com possíveis efeitos inflacionários.
Da mesma forma, os mercados se excitam com as despedidas em massa provocadas pelas fusões pois antecipam ganhos de produtividade e maiores lucros e dividendos.
Não é de surpreender, assim, que esse tipo de aberração comece a provocar uma reação vinda às vezes das direções mais inesperadas.
O discurso populista de Pat Buchanan acusa, por exemplo, "os açougueiros da indústria e das finanças".
Quinze dias atrás, o Newsweek reservava a capa aos retratos do presidente da AT&T e de três outros responsáveis por despedidas em massa sob a legenda "Assassinos Industriais".
Houve no passado quem defendesse a "autonomia do político" a fim de afirmar a independência dessa esfera em relação às considerações morais.
Hoje, sem sentirmos, estamos aos poucos aceitando a autonomia do econômico. É como se a economia nos impusesse obstáculos físicos intransponíveis da mesma natureza que o espaço e o tempo, a vida e a morte.
Os economistas gostam de falar da "tirania dos números", como se a economia fosse algo além e acima da sociedade, que se deve subordinar a seus imperativos.
Em realidade, organizar a economia de um modo ou de outro é uma escolha social como qualquer outra, que envolve preferir determinados valores, em detrimento de alternativas existentes.
Como diz Jesus no Evangelho, o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.
A economia deve, portanto, estar ao serviço de todos os homens e não pretender que os seres humanos a sirvam a qualquer custo e às expensas de valores humanos mais altos.
Não está escrito nas estrelas que a eficiência trazida pela competição exacerbada seja um valor maior do que a manutenção de empregos.
A competição, como qualquer jogo, precisa de regras e de juízes. Cabe à sociedade, através dos governos, impor regras capazes de assegurar -por meio de incentivos, preferivelmente- que as empresas respondam não só a seus acionistas mas também aos trabalhadores e à comunidade.
Sustentar o contrário é favorecer, depois da filosofia e do teatro do absurdo, o triunfo de uma economia do absurdo, que se alimenta do sacrifício dos mais vulneráveis.

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