São Paulo, sábado, 16 de março de 1996
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Dupla com Inhana consagrou a maneira de cantar em 'terça'

CD raro é testamento de Cascatinha, morto anteontem

MATINAS SUZUKI JR.
EDITOR-EXECUTIVO

Há pouco tempo, fui com Daniela Mercury minerar algumas raridades da MPB, na Baratos Afins, no centro de São Paulo.
Entre as gemas garimpadas, uma que eu jamais sonharia encontrar em CD (estranhamente, a tecnologia, em vez de acabar com, na verdade, aumentou ainda mais a nossa memória afetiva): "Os Grandes Sucessos de Cascatinha e Inhana" (selo Chantecler/Warner).
Um mundo, que eu não suspeitava estar tão vivo, voltou à minha casa, junto com a sensibilidade à flor-da-pele, simples e terrivelmente melancólica, espécie de chaga exposta e sem possibilidade de cicatrização, que saía no vapor barato daquela dupla de vozes.
Fiquei com vontade de enviar o CD para o Pedro Almodóvar, que, aqui no Brasil, procurou tanto esse tipo de música, de gosto duvidoso e de extremo bom gosto, que exala muita dor -na vereda tropical da cantora mexicana Chavela Vargas, que ele pôs no seu último filme e me indicou (e que, não por mero acaso, gravou uma música chamada "Mi Segundo Amor" -já que o primeiro amor é propriedade definitiva de Cascatinha e Inhana).
Lembrei-me de que ele gosta das letras em espanhol vertidas para o português e que cobrou de Caetano a não inclusão de "Índia" no primeiro disco "Fina Estampa".
"Índia", com o dueto caipira, tem a ver com Almodóvar. Assim como acho que Cascatinha e Inhana estão na ponta do fio do novelo que, desvencilhado, vem dar nos três "Fina Estampa" (CDs e show).
Também imaginei, lembrando as vozes em terça da dupla, uma das mais genuínas maneiras de se expressar da alma lírica brasileira (somos mestiços e barrrocos, portanto nos expressamos tão bem com cores de vozes diferentes entoando a mesma melodia), em um acalanto íntimo, Caetano Veloso, na voz grave, e Tetê Espíndola, três notas acima, cantando "Recuerdos de Ipacaray". Não seria bom?
O canto em terça do sertão brasileiro, que deve tanto a Cascatinha e Inhana e chegou ao sucesso mercadológico de tantas duplas de hoje, é uma manifestação brasileiríssima.
Mais do que em "Índia", penso que é em "Meu Primeiro Amor" (tem a bela versão de Nara, para ninar gente pequena e grande), que esta combinação de tristeza e beleza, casadas na voz dupla, tem o seu momento supremo.
Mas, não se pode deixar de mencionar a interpretação dos dois em "Sertaneja", que, no lado urbano, ficou definitiva com Orlando Silva, e na maravilhosa "Guacyra", reescrita por João Gilberto (no show "Fina Estampa", Caetano, em meio ao hispanoamericanismo que também marcava a dupla, menciona a linha Orlando/João).
No fundo, esta cascata sobre o Cascatinha não passa de devaneio extemporâneo porque, como ele lamentava, cantor do próprio destino, "você nem sequer se lembra de ouvir a voz deste sofredor".
Ninguém se lembra.

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