São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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O encanecido mistério sobre o sumiço do coronel Fawcett

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

É difícil imaginar um livro que, traduzido para o português, merecesse mais uma introdução informativa do que "Uma Aventura no Brasil", de Peter Fleming. Peter Fleming esteve no Brasil em 1933, membro que foi de uma expedição que procurava o coronel Fawcett, explorador inglês desaparecido na região do Xingu em 1925. Os tradutores e os editores não nos contam nada sobre Fleming nem sobre tentativas posteriores de elucidar o mistério desse sumiço. Na quarta capa só citam críticas feitas à edição original do livro, assinadas por ingleses conhecidos em 1933 e esquecidos hoje, como Harold Nicolson e J.B. Priestley.
Acontece que o autor do livro, Peter Fleming, esquecido também hoje em dia, só tem o nome lembrado de vez em quando por um motivo igualmente ignorado pela editora e os tradutores: Peter era o irmão mais velho (um ano só de diferença) de Ian Fleming, inventor de James Bond, o agente secreto 007, imortalizado na tela por Sean Connery e outros menos votados.
A história familiar, que deve ter sido meio penosa para Peter, é que, muito antes do irmão caçula, ele se tornou popular como autor de divertidos livros de viagem, como este agora traduzido sobre o Brasil. Isto na década de 30. O irmão Ian amadureceu mais devagar. Só publicou seu primeiro romance da série James Bond, "Casino Royale", em 1953. Mas foi aquele estouro. Ian não parou mais. Passou a ser o grande escritor da família, e, provavelmente, o autor mais popular do mundo inteiro na segunda metade do século. Os livros Bond já venderam mais de 18 milhões de exemplares.
Mas tudo bem. É sempre válido traduzir um livro que se ocupa do Brasil e que é sem dúvida divertido, em parte graças às coisas sarcásticas que o autor diz a nosso respeito. O capítulo sete, intitulado "Rio", é bom exemplo do divertido e do sarcástico no livro de Fleming. Eis a opinião que ele formou logo sobre o Brasil, ao chegar ao Rio: "O atraso do Brasil é um clima. É nele que se vive. Não se pode fugir dele. E não há nada a fazer. Deve, acredito, ser uma fonte de orgulho para os brasileiros o fato de possuírem uma característica nacional que é absolutamente impossível de se ignorar. Nenhum outro povo pode gabar-se disso. (...) Uma tendência do viajante à melancolia ou extravagância não precisa ser controlada entre alegres e econômicos franceses. A auto-revelação pode ser praticada entre os inescrutáveis chineses. Não é preciso ser bígamo para ir à Turquia. (...) Mas um homem com pressa vai se sentir miserável no Brasil".
Como o leitor terá observado, mesmo na transcrição de um pequeno trecho, a tradução flui, agrada. Mas por que traduzir o "miserable" do texto inglês por miserável? Não há nenhuma razão plausível para um homem com pressa se sentir miserável num país sem nenhuma. E qualquer dicionário inglês-português lembraria ao tradutor que "miserable", em inglês coloquial, significa desanimado, deprimido, na fossa.
No mesmo capítulo Fleming ridiculariza os monumentos públicos do Rio e descreve um que me parece ser o de Floriano, na Cinelândia. Aqui os tradutores resolveram, diante da dificuldade que um dicionário da língua inglesa esclareceria, criar um verdadeiro mistério. Traduziram ao pé da letra e a descrição ficou assim: "A Vitória tem a metade de um Nelson em Liberdade, por trás". Acontece que "half Nelson" é um golpe de luta, e a tradução deveria dizer algo como: "A Vitória aplica uma gravata por trás, na Liberdade".
Como se vê, a tradução tem suas distrações. Quanto ao mistério Fawcett, nada fica esclarecido, é claro. Até hoje nada de certo se descobriu. Eu próprio participei de uma expedição ao Xingu, em 1952, examinando o local onde tinha sido descoberta uma ossada que poderia ser a de Fawcett. O chefe do grupo era meu querido amigo e grande sertanista Orlando Villas Boas. E conosco estava ninguém menos que Brian Fawcett, filho do desaparecido. A viagem me rendeu um livrinho, "Esqueleto na Lagoa Verde", e até hoje se discute se a ossada é ou não de Fawcett.
"Uma Aventura no Brasil" interessará aos leitores que nunca tomaram conhecimento da história do explorador desaparecido. Pode ser até que os responsáveis por "Uma Aventura no Brasil" não informem nada ao leitor para manterem vivo o "suspense" que ainda possa pairar sobre esse encanecido mistério Fawcett. Desejamos boa sorte a "Uma Aventura no Brasil".

A OBRA
Uma Aventura no Brasil - de Peter Fleming. Tradução de Lilian DePaula e Magno Dadonas. Editora Marco Zero (r. da Balsa, 549, São Paulo, CEP 02910-000, tel. 011/876-2822). 288 págs. R$ 29,00.

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