São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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Um inventor do cinema no Brasil

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

A crítica mais frequente ao cinema de Julio Bressane, 49, é a que o acusa de "falta de comunicação com o espectador".
Há no livro textos de filósofos, psicanalistas, poetas, críticos, compositores, cineastas, pesquisadores. São artigos, reportagens, ensaios, entrevistas, resenhas, depoimentos, poemas -um painel multifacetado de uma obra idem.
Bressane surgiu para o cinema em meados dos anos 60 sob o signo da ruptura temática e estética com o cinema então hegemônico. Em lugar dos heróis e vilões sociais do Cinema Novo, Bressane -ao lado de Rogério Sganzerla- introduziu seus anti-heróis irredutíveis, ou antes, seus "heróis não-civilizadores", como define Olgária Matos no primeiro ensaio do livro.
Concentrando-se sobretudo nos primeiros filmes do diretor, Olgária aborda a "desterritorialização" de seus personagens, em sua errância e sua inocência primordial. Mostra que, libertados da geografia e da psicologia, os personagens de Bressane cumprem uma trajetória metafísica, existencial. Não é um cinema de mera notação social ou "denúncia", mas um cinema de indagação estética e ética.
Se Olgária se detém principalmente no "primeiro Bressane", o poeta Haroldo de Campos concentra-se em "Sermões" (1989), filme de que participou como "orientador poético". Tendo sugerido, entre outras coisas, que Bressane introduzisse no filme o confronto entre o padre Antonio Vieira (1608-97) e a poeta e religiosa mexicana Sor Juana Inés de la Cruz (1651-95), Haroldo trata em seu ensaio justamente da relação entre os dois escritores no contexto do barroco ibero-americano.
Descontando o habitual "eu me amo" do poeta e ensaísta, trata-se de um dos textos mais interessantes do livro. Vieira, aliás, é um nome central do cinema de Bressane, como aponta o crítico Jean-Claude Bernardet numa curta e luminosa crítica de "Sermões" publicada na Folha em 1989 e transcrita no livro.
Catorze anos antes de "Sermões", o padre jesuíta tinha sido personagem de "O Monstro Caraíba", só que ali sob uma luz totalmente diversa -decifrando charadas e fazendo palavras cruzadas-, como nos mostra o rigoroso estudo semiótico "O Monstro Caraíba Comeu", de Josette Monzani, o mais técnico de todo o volume.
Em contraste com esse texto quase árido, aparecem os depoimentos calorosos de amigos e/ou colaboradores de Bressane, como os compositores Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti, o poeta Régis Bonvicino e o cineasta Ivan Cardoso.
Rosa Dias -mulher do cineasta e sua colaboradora em diversos filmes, como assistente de direção ou cenógrafa- comparece com um agudo estudo do uso do plano-sequência em "Brás Cubas", "Sermões" e "O Mandarim".
Há ainda ensaios de grande fôlego do crítico literário Antônio Medina Rodrigues (sobre a luz e a sombra -tomadas literal e metaforicamente- em "Tabu"), da psicanalista Miriam Chnaiderman (sobre o diálogo entre "A Agonia" de Bressane e "Limite" de Mário Peixoto), do crítico Ismail Xavier (sobre a tensão entre "o cinema-olhar e a imagem-texto") e do compositor Livio Tragtemberg (sobre a relação entre imagem e música).
"O Rei do Baralho" (1973) é alvo de dois textos importantes do volume: um de Décio Pignatari e outro de Fernão Ramos.
O volume se encerra com dois ensaios que, por seu caráter panorâmico e abrangente, deveriam talvez estar no começo: "Julio Bressane: Trajetória ou Pontos Luminosos no Céu do Cinema", do cineasta e pesquisador Carlos Adriano, e "O Experimental no Cinema Nacional", que o próprio Bressane escreveu para o Mais! em 1993.
O primeiro é a mais esclarecedora visão de conjunto da obra de Bressane contida no volume. O segundo historia momentos cruciais da invenção cinematográfica no Brasil e os insere no contexto das vanguardas internacionais. Escrito com a erudição, o brilho e a paixão que caracterizam Bressane, serve para mostrar de onde vem seu cinema e qual é o espírito que o move. Sua última frase vale por um manifesto: "Nosso cinema ou é experimental ou não é coisa alguma!"
Lançamento - "Cinepoética" será lançado em Porto Alegre, no dia 26, às 20h, por ocasião da estréia de "O Mandarim" (Cinema Universitário, av. Paulo Gama, 110)

LEIA sobre "O Mandarim" e o compositor Mário Reis à pág. 5-13

A OBRA
Julio Bressane - Cinepoética - de Bernardo Vorobow e Carlos Adriano (orgs.). Massao Ohno Editor (r. Consolação, 3.676, São Paulo, CEP 01416-000, tel. 011/280-4833). 174 págs. R$ 15,00.

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