São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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Um depoimento inédito de Abgar Renault, o último poeta modernista

Drummond sempre foi muito intransigente; achava-o difícil

JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nesta entrevista, feita em Belo Horizonte, onde se recuperava -e bem- de uma pneumonia, Abgar Renault (que morreu em 31 de dezembro do ano passado) nunca respondia de pronto às perguntas.
Não que a resposta custasse a lhe ocorrer. A pausa, inquietante para o entrevistador, parecia antes o efeito de uma espécie de exame secreto, durante a qual Abgar como que aferia a consistência da pergunta. A resposta vinha, então, não como automatismo de entrevista pingue-pongue, convenção, o pongue do pingue, mas como alteridade, marcar de distância, autonomia, antagonismo elegante.
Isso de testar, sobrecenho franzido, e a ampulheta interna marcando o momento da resposta, a consistência das perguntas, vinha-lhe também de uma outra coisa: da sua antipatia invencível por esse tipo de iletrismo funcional, de idiotia assentada, hoje existente nos usos da língua. No último livro que teve publicado -"Reflexões Efêmeras", de 1994 (Mazza Edições)- ele apanha algumas dessas cretinices linguísticas fundamentais. Coisas como: "Estarei aqui às 16 horas. Em tese". Ou: "Fui esperá-lo, mas o amigo chegou num avião a priori". Mais: "Um novo conceito em banheiras".
Abgar Renault nunca deixou de fazer valer aquele seu esquema pessoal de autonomia. Assim, não achou muita graça na famosa passagem da caravana paulista por Minas em 1924, Mário e Oswald de Andrade à frente, e que foi vivida decisivamente como um misto de happening e acúmulo de forças pelos modernistas de Belo Horizonte. "Para mim não foi", disse Abgar Renault depois de fazer seu exame secreto. Sempre esteve porém perfeitamente dentro de todos os aparelhos do modernismo em Minas: "A Revista", a revista "Verde", de Cataguazes, o "Grupo do Estrela". Era até a sua morte, aos 92 anos, o último modernista vivo.
Essa autonomia funcionou também numa situação na qual, fazendo parte de uma geração quase caricaturalmente francesa, de "caboclos bovarizados", como dizia o próprio Mário, Abgar Renault tenha seguido por outra: a língua e a literatura inglesas.
Embora a sua opção preferencial pelo inglês tenha lhe valido uma condecoração da rainha, estrada real para ele foi mesmo a tradução, desde o início da Segunda Guerra, dos "Poemas Ingleses de Guerra", publicados em livro em 1942. Wilfred Owen, Rupert Brook, Douglas Gibson, os poetas da chamada "geração de guerra", a de 14. Num artigo sobre estas traduções, que já vinham sendo publicadas no "Correio da Manhã", Álvaro Lins chamou o seu autor de "mestre".
Sua reticência em publicar seus poemas era tal que em 1954 Manuel Bandeira, José Olympio, Carpeaux, Aníbal Machado, Drummond, Rodrigo Mello Franco de Andrade, alguns outros, lhe mandam um telegrama de intimação: que publique os poemas. Não adiantou muito.
Só em 1968 é que apareceriam "A Lápide sob a Lua" e "Sonetos Antigos", este contendo sonetos escritos na década de 20. Em 1972, sairia "Sofotulafai" (nome de uma cidade asiática), um poema fervilhante, jogralesco e sofisticadíssimo sobre a palavra. Em 1983, sairia "A Outra Face da Lua" (José Olympio) e, em 1990, a Record iria reunir mais ou menos tudo na "Obra Poética". Maneira de dizer: 70% da poesia de Abgar Renault continua inédita e desconhecida, há quem garanta.
Apesar disso, essa poesia sempre despertou admirações incondicionais. Otto Lara Resende costumava ficar de joelhos, para valer, quando encontrava Abgar. Via na sua poesia uma "densidade metafísica que foge à nossa tradição lírica". Verdade. Pena que lhe colaram o selo bobo de um vago pessimismo, coisa que não diz nada sobre essa poesia que, no fundo, é arte de desassombro, que não recua diante do regime tempestuoso e algo sem remédio da vida, antes contempla, exclama e se exalta com isso.
Abgar Renault dava mais valor à sua experiência de homem público do que de poeta. A questão da educação e alfabetização no Brasil foi sua grande tarefa. Secretário de Educação algumas vezes, ministro também da Educação do governo Nereu Ramos (1955), foi especialmente amigo de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro.
Ficou famoso o pronunciamento que fez em Adis Abeba (Etiópia), numa conferência da Unesco em 1961. Sem algumas medidas, disse, de reforma social, ele via o momento em que "a ignorância e a fome dar-se-iam as mãos". Na entrevista a seguir, da qual também participaram seu sobrinho Afonso Renault e o escritor Mário Garcia de Paiva, foi perguntado a ele se essas tarefas tinham sido cumpridas. O seu exame secreto o obrigou a dizer que não.
*
Folha - Em que mundo, se me permite dizer assim, foi que o senhor nasceu?
Abgar Renault - Eu nasci em 1901, em Barbacena. Vim com quatro meses para Belo Horizonte, avenida Amazonas, 420. Estudei "Leitura" numa escola perto da minha casa. Comecei muito cedo a ler. Meu pai tinha uma biblioteca muito bem escolhida, muito bem cuidada. Eu comecei a ler aquelas coisas muito cedo. Meu pai era professor. Do lado de minha mãe, meu avô era músico de grande valor, mestre Herculano de Castro, a exemplo do seu filho, e meu tio, o pianista e compositor Pedro Castro. Eu me lembro que aos dez anos ouvia muito boa música em casa.
Folha - Que tipo de professor era seu pai?
Renault - Ele lecionava em caráter particular, em casa, para filhos de famílias ricas. Depois foi convidado pelo governo para fundar o Instituto João Pinheiro, que era destinado a menores abandonados. Ali ele fez uma história muito rica de vida, algo que durou mais de 40 anos. Eu seguia atenciosamente a vida de meu pai, as coisas que ele trazia para casa, e aprendi, não sei como, a ensinar. Eu me tornei, já naquela época, naquela idade, um bom professor de português. Também professor particular. Eu me lembro que tive como aluno o San Tiago Dantas.
Folha - De que livros o sr. se lembra na biblioteca do seu pai?
Renault - Eu me lembro de uma coleção brasileira. Tinha Bilac. Nessa época influíram muito no meu espírito e na minha formação alguns clássicos portugueses, que também havia na biblioteca do meu pai. Foi nesse período, entre os meus 16 e os meus 20 anos, que eu acredito que me tenha formado. Eram livros de poesia, de prosa e obras de pensamento.
Folha - O sr. já escrevia poesia nessa época?
Renault - Muito ruim.
Folha - Os "Sonetos Antigos", que só foram publicados em 1968, também são desta época?
Renault - Eu tinha 18, 19 anos. Eu escrevi aquilo, em parte, por causa do hábito de ler aqueles autores, Camões principalmente. Aqueles autores me impressionaram muito então, a qualidade, o gênero, a maneira de escrever.
Folha - No início dos anos 20 o sr. participou de uma geração, de um grupo que ficou conhecido como o "Grupo do Estrela", formado por Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Emílio Moura, e que foi uma espécie de primeiro instantâneo do modernismo em Belo Horizonte. O que era aquele grupo, como ele funcionava, se reunia?
Renault - Não é fácil definir isso, não. Era um grupo muito afetuoso, umas dez ou doze pessoas. Nós nos reuníamos todas as noites num café chamado "Café Estrela", na rua da Bahia. Ali tomávamos o nosso chope, o nosso cafezinho, fumávamos os nossos cigarros. Ficávamos até uma, duas horas da manhã, discutindo os autores da época e os clássicos. Era um contato muito rico, muito cheio de novidades. Nós levávamos o que cada um tinha escrito na véspera e líamos os textos uns para os outros.
Folha - O que tornou possível o surgimento, numa cidade então recém-fundada, e provinciana, do grupo modernista mineiro, o "Grupo do Estrela"?
Renault - Estou convencido de que foi a ação do Carlos como poeta e como crítico.
Folha - Quando o sr. encontrou Carlos Drummond de Andrade pela primeira vez?
Renault - O Carlos eu conheci de uma maneira muito curiosa. Foi em frente ao cinema Odeon, que era também na rua da Bahia. Eu estava esperando a segunda sessão e o Carlos aproximou-se de mim e me disse: "O senhor é o Abgar, não é?". Eu disse: "Sou eu mesmo, por quê?". Ele falou: "Eu gosto muito das suas coisas". Eu fiquei muito preso naquilo. Eu sabia que o Carlos era um nome muito importante, mas não tinha lido nada dele ainda. Ali nós fizemos uma relação muito numerosa, muito boa. Um outro sujeito que fazia parte do grupo, e que foi muito importante, e tinha muita influência entre nós, embora escrevesse pouco, foi o Milton Campos. Era um crítico excelente, e ao mesmo tempo muito engraçado nas suas observações. Talvez ele tenha sido o grande orientador.
Folha - E o sr. passou então a gostar também das coisas do Carlos Drummond de Andrade?
Renault - Sim. Mas não gostava de alguns poemas, depois publicados em "Alguma Poesia", nos quais ele carregava contra a poesia antiga, clássica. Mas eu não me lembro de nenhuma desavença com ele. Uma vez eu lhe escrevi comentando um poema seu sobre Belo Horizonte -a meu ver exagerado-, e ele me respondeu de forma bastante contrariada. Ele sempre foi muito intransigente. Achava-o difícil. Mas nunca tivemos nenhuma desavença.
Folha - E o Pedro Nava? Parece que era o mais transbordante.
Renault - Muito... O Nava era bravo, sabe? Gostava muito de um chope. Bebia muito.
Folha - Quais eram os escritores que o grupo adotava, os eleitos pelo grupo? E como é que os livros chegavam até vocês?
Renault - Nós encomendávamos os livros no Alves, a Livraria Alves, também na rua da Bahia. Lá é que íamos pegar os livros recém-chegados dos dois autores que eram os nossos preferido então: Rémy de Gourmont, que até hoje eu acho um escritor extraordinário, e Anatole France. Nós líamos esses dois com muito entusiasmo, com muito calor, e fazíamos deles os nossos autores preferidos, e se possível imitados.
Folha - O sr. esteve com os paulistas, Mário de Andrade, Oswald, Tarsila, quando eles vieram a Belo Horizonte, em 1924?
Renault - Estive. Mas eu não tive boa impressão, não.
Folha - O sr. é o primeiro, dentre os que faziam parte daquela geração, a dizer que não ficou fascinado pela passagem da chamada "caravana paulista" por Belo Horizonte, na Semana Santa de 1924. Houve algum problema entre o sr. e algum deles?
Renault - Não. Apenas eu achei que eles tinham uma preocupação muito grande de fazer graça. Todos. Especialmente o Mário de Andrade.
Folha - Drummond, Pedro Nava, todos os escritores reconstituem esse encontro, principalmente com Mário de Andrade (com quem vários deles passaram a se corresponder) como decisivo para eles.
Renault - É possível que sim. Para mim não foi.
Folha - Numa geração quase incorrigivelmente francesa como a de vocês, e que era, segundo o próprio Mário de Andrade, uma geração de "caboclos bovarizados", o sr. é talvez o único a tomar o caminho da língua, da literatura, da poesia inglesa. O que o empurrou para isso?
Renault - Puro acaso, e talvez a facilidade no reproduzir em minha voz as sutilezas da língua inglesa.
Folha - Quais eram os autores da língua inglesa que o sr. lia?
Renault - Shakespeare, principalmente Shakespeare. Depois, Dr. Johnson, John Donne, Keats, Yeats e Walter de la Mare. Com esses dois últimos, encontrei a poesia pura. Não posso me esquecer de Emily Dickinson. Ah... tem ainda aquele americano: Pound. E na poesia americana tem ainda Poe e Wallace Stevens. É muito difícil isso, são tantos nomes, tantos livros.
Folha - O que o levou a traduzir os "poemas ingleses de guerra"?
Renault - Acho que foi a comoção generalizada do quadro de poder internacional trazida pela 2ª Guerra. Aqueles poemas a meu ver traziam ao Brasil um sentimento novo com relação à guerra.
Folha - Como apareceu esse seu interesse pela educação?
Renault - Meu pai, com certeza.
Folha - O sr., quando foi para o Rio, em 1930, foi trabalhar com Francisco Campos no Ministério da Educação. Decididamente era um espírito autoritário, autoritário esclarecido talvez, mas um homem que estava longe de ter uma espécie de paixão democrática pela sociedade. O sr. não concorda?
Renault - Ah, verdade, ele não era um democrata. Era um espírito autoritário, ligado a um certo pensamento alemão, que ele conhecia profundamente. Mas era uma grande figura. O fato é que o que ele estabeleceu em Minas Gerais em matéria de ensino primário foi uma coisa inteiramente nova e inteiramente moderna.
Folha - E Anísio Teixeira? O sr. conheceu?
Renault - Intimamente. Anísio foi das pessoas que mais estimei e admirei na minha vida. Durante um período da sua vida ele teve que deixar um cargo público em virtude das posições à esquerda. Sempre foi uma inteligência fulgurante.
Folha - E Darcy Ribeiro?
Renault - Eu conheci em Brasília, numa comissão de que participei. Acho o Darcy um espírito extremamente aberto, e sempre considerei excelentes suas concepções sobre educação.
Folha - Em 1961, o sr. fez uma conferência na Unesco, em Adis Adeba, parece. O sr. disse então que temia pela América Latina, pelo momento em que a fome e a ignorância iriam se dar as mãos. Como ficou essa ameaça? As tarefas da educação e as reformas necessárias foram cumpridas?
Renault - Não foram cumpridas. Pela falta de intenção de cumpri-las. Os responsáveis pela política educacional no Brasil nunca tiveram idéia do sentido da educação popular no país. Além disso, algo que seria de se esperar também não aconteceu: uma política no sentido da promoção popular. Isso não aconteceu.
Folha - O sr. viveu todo um século, que um historiador inglês chamou num livro recente de "a era dos extremos". Duas guerras, revoluções, o fim do mundo soviético: o sr. viveu isso. Vamos acabar com um gemido, como escreveu Eliot?
Renault - A despeito de tudo, a capacidade de renovar-se da humanidade não se esgota nunca.

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