São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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A época dourada dos mandarins

IVAN CARDOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

No início do ano passado, durante a produção de "O Mandarim", resolvi procurar o lendário dr. Joaquim Guilherme da Silveira, figura de proa do "high society" carioca, ex-dono da poderosa Fábrica Bangú e mais do que isso tudo, "primo rico" do não menos famoso cantor -homenageado por Julinho Bressane, em sua nova cinebiografia- Mário da Silveira Reis!
Marquei a entrevista e dirigi-me ao seu escritório na avenida Rio Branco. Onde, confortavelmente instalado num sofá de couro esperei alguns minutos, até que a porta se abriu e um elegante senhor -muito parecido com o inesquecível "bacharel do samba"- entrou sorrindo, esbanjando classe e simpatia: "Estou muito feliz com as notícias que tenho lido sobre o filme de vocês! Até depois da morte, o Mário continua surpreendendo e nos dando alegrias... Fico muito contente que ele tenha feito novas amizades com jovens tão inteligentes como Bressane!"
Estava diante de "último dos Silveirinhas" -um verdadeiro ícone de nossa extinta aristocracia, cuja história se mistura com a da própria Cidade Maravilhosa- que aos 80 anos, falou carinhosamente do seu querido primo-irmão: "O Mário vivia bem com a música. Ele morava no Copacabana Palace, de onde só saía para ir ao Country, ou, para as corridas do Jockey Club!"
Paixões "Uma das facetas mais curiosas da sua personalidade era a sua prodigiosa memória. Ele sabia tudo sobre a história do Rio de Janeiro e conhecia de cor o nome de todas as ruas da nossa cidade, que ele tanto amou... O futebol era sua outra grande paixão! Torcedor fanático do América, o Mário era capaz de se lembrar da escalação dos times e dos resultados de partidas realizadas, até na década de 20... Quando chegou a vestir a camisa titular do esquadrão americano. Ele não era um craque, mas foi um bom centroavante goleador!!!"
"Certa vez, isso é engraçado", se recorda animado o dr. Joaquim, "o Boy Barrozo do Amaral -pai do Zózimo-, que também foi seu grande amigo, estava teimando com ele sobre o autor de um gol, do Vasco da Gama, em 1928..."
- "Quem marcou foi o Chiquinho e você não viu nada, porque estava do outro lado do campo", disparou o Mário. "Revelando que naquela partida, o Boy era bandeirinha!!!" (gargalhadas)
"Neste ano, o meu primo sofreu um forte golpe com a morte do seu pai -que era um comerciante bem-sucedido-, num desastre de trem, em Engenheiro Passos. Ele tinha 20 anos e também ia fazer esta viagem mas na última hora não foi, escapando do pavoroso acidente... Seu irmão mais velho, Jojoca, passou a administrar o dinheiro da família... E eles continuaram a morar na Tijuca, com a minha tia", prossegue Silveirinha, mergulhando nas brumas do passado.
"Pouco depois, o Mário precisou da sua parte na herança e o Jojoca tinha perdido tudo na Bolsa... Então, o papai -naquela época, a nossa família era muito ligada ao presidente Washington Luís-, arranjou que ele fosse nomeado solicitador do Banco do Brasil. O emprego era bom, a grana começou a entrar, e rapidamente, ele comprou uma Plymouth conversível: o Pássaro Azul!" -se diverte o dr. Joaquim, acelerando no túnel do tempo.
Mas, como no velho samba de Noel, depois de comprar o carro..., "ele ficou tão duro, que não tinha dinheiro, nem pra botar a gasolina!" Sendo obrigado a fazer uma vaquinha com seus primos -o nosso ilustre entrevistado e o seu saudoso irmão gêmeo.
Samba "Naqueles anos" -final da década de 20- "a onda era se reunir no Lido. Copacabana era um areal. Só existia o recém-inaugurado Copacabana Palace e a casa dos Duvivier. Aí, já de tanque cheio, voávamos pela noite... Nós frequentávamos, diariamente, as rodas de samba da Mangueira, Estácio, Salgueiro e outros morros."
Quem era a tripulação do "Pássaro Azul"?
"Todos os cantores e compositores viviam lá em casa", prossegue emocionado, "onde a grã-finagem e os sambistas se divertiam harmoniosamente. O Mário sempre cantou afinado. A nossa família o incentivava e toda a sociedade o adorava. O Baby Monteiro de Carvalho e o Chico Paula Machado não perdiam uma só reunião. Sua arte era tanta, que ninguém podia ser contra. Ele foi o avô da Bossa Nova..., interrompe pensativo o dr. Joaquim.
"Aliás, a primeira vez que nós vimos aquele rapaz..., o João gilberto cantando na televisão..., a candinha, minha mulher, logo disse : esse sujeito está imitando o Mário!!! (muitas gargalhadas)
Como o Mário penetrou no mundo artístico?
"Primeiro, nós conhecemos a Brancura -que era um malandro do Mangue, que ficou célebre por ter dado uma tremenda surra num bando de gaúchos, que depois de amarrarem os seus cavalos no obelisco, foram comemorar a vitória de Getúlio Vargas, na zona... Foi ele, que apresentou o Mário ao Sinhô... E, por intermédio do 'Rei do Samba' conheceu o 'Rei da Voz' Francisco Alves!"
"Na verdade, o meu primo entrou no samba pra ganhar dinheiro", desabafa Silveirinha. "Como meio de vida mesmo. A Revolução de 30 foi muito pior que o Collor... Os gaúchos de bombacha e lenço vermelho no pescoço invadiram o Rio, afastando do poder a velha aristocracia da capital. Nós chegamos até a ser presos em 32, e o Mário, que já era muito popular, ia diariamente à porta da delegacia para saber como estávamos. Ele também foi despedido do banco, e a perda do emprego foi providencial para sua carreira artística. Então, aquele alemão da Casa Edson, o Fred Figger, lhe deu a oportunidade de gravar o seu primeiro disco... E, a partir daí, o Mário não parou de fazer sucesso!"
Você também conheceu o Noel Rosa?
"Muito. Ele também frequentava as nossas festinhas. Ah! Eu vou contar pra vocês, outra passagem curiosa daquele tempo", continua animado o dr. Joaquim, em suas alegres reminiscências. "Certa vez, Noel nos disse que ia se casar, convocando todos os amigos para fazer uma serenata em homenagem a sua noiva! Então, Mário, Chico Alves, Guilherme, Angelo Sertório e muitos outros, seguimos para Vila Isabel. Mas, de sacanagem, nós combinamos apedrejar a casa da pobre moça, logo após o término da serenata... Enquanto Noel, já devidamente instalado no 'Pássaro Azul', mandava beijinhos para sua doce amada e todos iam embora em disparada, os passageiros do último carro -no qual eu estava- se encarregou de quebrar todos os vidros da casa... Quando soube, Noel ficou muito chateado e nunca mais falou comigo..."
É verdade que o Mário teve um romance com a Carmen Miranda?
"Não sei se chegaram a namorar. Mas teve alguma coisa entre eles... A Carmen começou trabalhando numa casa de gravatas, no centro da cidade: A Principal. Era muito simpática, alegre e insinuante. O Mário adorava estar apaixonado, não se eximindo de curtir uma boa dor de corno -o que era muito comum antigamente... Teve grandes paixões e, entre elas, a Pequena Notável", finaliza saudoso daqueles dias, o último mandarim!

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