São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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Brasil traz mistura de doenças de ricos e de pobres, diz pesquisador

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Antigos dramas da saúde pública, como a poliomelite, estão praticamente equacionados no Brasil. Também diminui a desnutrição entre adultos e crianças. O mesmo vale para a diarréia, principal causa da mortalidade infantil.
Mas um outro grupo de indicadores é bem mais insatisfatório. Aumenta a obesidade e se morre proporcionalmente bem mais de câncer, de acidentes de trabalho ou acidentes de trânsito.
Com isso, convivem no país, grosso modo, uma "agenda tradicional" e uma "nova agenda" de saúde pública. É esse um dos temas estudados pelo Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde), da USP.
O núcleo acaba de publicar, em 359 páginas, "Velhos e Novos Males da Saúde no Brasil - a Evolução do País e de suas Doenças".
Os 30 pesquisadores que participaram do trabalho foram coordenados por Carlos Augusto Monteiro, 48, professor-titular do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Eis os principais trechos de sua entrevista à Folha.
*
Folha - Como explicar a existência de tantos indicadores positivos na área da saúde, quando as desigualdades sociais são tão crônicas?
Carlos Augusto Monteiro - Não há relação linear entre a saúde e o desenvolvimento da sociedade. Há aspectos que melhoram a saúde e outros que vão piorá-la.
Folha - Por exemplo?
Monteiro - Em nosso livro, procuramos distinguir a agenda tradicional da saúde pública -ligada à escassez material e à ignorância-, enquanto uma nova agenda está ligada ao comportamento, ao estilo de vida das pessoas.
Na agenda tradicional, a relação entre saúde e pobreza é mais simples: conforme diminui a escassez material, também cai a incidência de parasitoses, infecções.
Folha - E a "nova agenda"?
Monteiro - É nela que se encontram o câncer, as doenças cardiovasculares, os acidentes. Mas aquilo que chamamos "transição epidemiológica" não foi completa. Continua grande a incidência de doenças derivadas da pobreza.
Folha - O sr. afirma no livro que seria desastroso ao poder público estabelecer duas políticas separadas de saúde. Por quê?
Monteiro - Para nós, o problema da saúde pública nunca poderá ser simplificado a ponto de haver uma política para os pobres e outra para os ricos. Numa mesma família, podem-se encontrar a criança desnutrida e a mãe cujo principal problema é a obesidade.
Folha - Seria o caso da mãe que consumiria proteínas em excesso e deixaria os filhos passarem fome?
Monteiro - Não me refiro a essa perversidade. No caso da criança, a doença está associada a infecções causadas por saneamento inadequado. A desnutrição não significa necessariamente deficiência alimentar. Há um décimo de mulheres obesas na faixa que concentra os 30% da população mais pobre.
Folha - Como assim?
Monteiro - A obesidade, entre as mulheres adultas, é mais frequente nas faixas de renda baixa e média do que na faixa de renda mais alta. É por isso que não dá para aplicar políticas de saúde distintas. A saúde pública deve tratar de males "modernos".
Folha - Como se conseguiu baixar tanto a desnutrição quando os pobres têm uma fatia cada vez menor no bolo da riqueza?
Monteiro - A resposta mais simples seria: ninguém fica desnutrido por causa da pobreza relativa. Fica-se desnutrido por causa da pobreza absoluta. Uma distribuição de renda pior determina o acirramento de tensões sociais. Isso produz o aumento da mortalidade por acidentes de violência nas grandes cidades. Em hipótese alguma o aumento da desigualdade estaria por trás da desnutrição.
O desnutrido é o pobre absoluto. Folha - Na cidade de São Paulo, segundo o livro, a mortalidade infantil cresceu mais de 40% entre 1961 e 73. Depois caiu. O que houve?
Monteiro - Durante muito tempo, a elevação da mortalidade infantil foi atribuída ao regime militar e ao arrocho salarial -com diminuição de renda da população.
Foi uma tese que correu o mundo. Fizemos uma revisão do período e recalculamos as estatísticas. Nossas conclusões foram outras.
O que piorou no período foi a distribuição de renda, a pobreza relativa. O salário mínimo caiu, mas o nível médio dos salários permaneceu estável e depois voltou a subir. Já que não houve deterioração de renda, fomos saber o que ocorria com a mortalidade infantil. Ela não subia entre todas as crianças. Crescia só nos primeiros cinco meses de vida. Dos seis aos 12 meses, permaneceu estável.
Folha - O que aconteceu então?
Monteiro - Foram crianças pequenas que morreram sobretudo por diarréia. Nesse período, pesquisando outros indicadores, havia um decréscimo na porcentagem de aleitamento materno. Paradoxalmente, isso ocorreu quando aumentava o padrão de higiene como fruto da educação e de hábitos mais modernos. Junto com essa "modernidade", veio o hábito do leite em pó. A ciência foi omissa, e os profissionais de saúde se deixaram levar por critérios da indústria de alimentos.
Folha - Por que, então, a situação se inverte no período seguinte?
Monteiro - Há dois fatores: a volta do aleitamento materno generalizado e, a partir de 74, a expansão do saneamento.
Folha - Voltando à agenda tradicional: por que a hanseníase (lepra) não recua e o Brasil continua a ser o segundo país em incidência?
Monteiro - Nem todas as doenças da agenda tradicional se beneficiaram com a modernização. O que mostra que elas não são determinadas da mesma forma. A hanseníase é uma doença urbana, ao contrário da esquistossomose, que é rural e tende a ganhar um "bônus" da modernização. Tivemos no Brasil uma massificação da assistência médica, mas a qualidade dessa assistência não melhorou.
Folha - Ou seja, há uma ineficiência do serviço de saúde.
Monteiro - Perfeitamente. Graças a ela a hanseníase é estável.
Folha - Já há algum indicador sobre os efeitos da "reforma administrativa" do governo Collor na saúde pública?
Monteiro - Em nosso livro, esses efeitos não aparecem, porque as últimas das estatísticas compiladas encerraram-se entre 1992 e 1993. Mas, numa pesquisa que estamos fazendo na cidade de São Paulo, comparando 85 e 96, uma de nossas suspeitas é que dados como cobertura vacinal pioraram.
Folha - Por que decresceu o câncer no estômago?
Monteiro - Isso é um fenômeno mundial. A suspeita é que uma parte importante da doença era determinada pela alimentação. O salgamento e a defumagem deram lugar ao consumo de alimentos conservados por refrigeração.
É curioso. Assim como a modernização trouxe o tabagismo e mais câncer no pulmão, ela também trouxe a geladeira e menos câncer no estômago. Veja aqui mais um motivo para não cair na tentação de relacionar saúde pública apenas com a renda da população.
Folha - Como explicar a menor existência de óbito por acidentes cardiovasculares?
Monteiro - Morre-se mais por doenças do coração, mas isso porque a população envelhece e passa a haver mais pessoas suscetíveis a morrer dessas doenças. Mas, quando vemos o Estado de São Paulo, que possui estatísticas mais adequadas, morre-se menos do coração na faixa entre 40 e 60 anos.
Isso já aconteceu em países desenvolvidos. No caso daqui, dois fatores podem explicar. Há, em primeiro lugar, a dieta que se modificou nos últimos 20 anos.
Há um aumento no consumo de gordura. Mas o Brasil substituiu a banha de porco pelo óleo de soja. É mais barato. Não precisou haver programa de educação para isso.
Outro aspecto está na massificação da assistência médica, mas não podemos mensurar corretamente esse impacto.
Folha - Não há nisso uma relação com a diminuição do tabagismo?
Monteiro - Os dados mais recentes que coletamos são de 89. Dá para perceber que, na população mais pobre, o tabagismo é duas vezes maior que na mais rica. É uma evidência de declínio.
Folha - Por que o livro não trata em nenhum momento do alcoolismo na nova agenda?
Monteiro - Não há informações gerais e confiáveis. Um dado recente demonstra que, em São Paulo, entre os adultos entre 30 e 60 anos, a cirrose hepática mata mais que qualquer tipo de câncer.
Se juntarmos esse dado com os acidentes que têm como principal causa o consumo de álcool, dará para supor que se trata de um ponto importante. Nada leva a crer que nos últimos 20 anos o alcoolismo tenha diminuído.
Folha - Voltamos então à nova agenda?
Monteiro - Exatamente.

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