São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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Um escritor desafia a história

OTÁVIO DIAS
DE LONDRES

Sete anos depois de escrever "Os Versos Satânicos" e de, em consequência, ser condenado à morte pelo então líder político e religioso do Irã, aiatolá Khomeini, o escritor Salman Rushdie, lança novo romance e decide desafiar a ameaça que paira sobre sua vida.
Nascido na Índia e naturalizado britânico, Rushdie, 48, considera seu novo livro, "O Último Suspiro do Mouro" ("The Moor's Last Sigh"), o primeiro desde "Os Versos Satânicos", como uma prova de que ele não foi intimidado pela sentença de morte, decretada sob o argumento de que o autor teria ofendido o islamismo.
No lançamento do romance no Reino Unido, em agosto do ano passado, Rushdie, num gesto inédito de desafio, anunciou sua presença na noite de autógrafos com 12 horas de antecedência.
"Estava determinado a não ser isolado dos leitores. É importante mostrar que não estou intimidado", disse Rushdie à Folha, em entrevista exclusiva realizada na última segunda-feira, em Londres.
Desde então, correu o mundo para divulgar o romance, que já provocou a fúria do líder nacionalista Bal Thackeray, do grupo Shiv Sena, por suas críticas ao acirramento do fanatismo hindu. A tradução brasileira chega às livrarias no próximo dia 29 (Companhia das Letras, 456 págs, R$ 26,00).
Há menos de dois anos, um jornalista, antes de entrevistar o escritor, era revistado e transportado para um lugar desconhecido da cidade, em geral um quarto de hotel. Dessa vez, o encontro aconteceu numa sala de sua editora britânica Random House, em Londres, sem guarda-costas à vista. Durante 1h30, Rushdie falou à Folha sobre sua condenação à morte, suas convicções políticas e literárias, seus hábitos de leitor e escritor.
*
Folha - Com "Os Versos Satânicos", o sr. se tornou um autor e um personagem político. Seu novo livro também provocou políticos hindus. Criar polêmica é um dos papéis do escritor?
Rushdie - Claro. Todos os meus livros têm uma discussão a respeito da história contemporânea. Em nossa era, não é possível separar a vida pública das nações da vida privada dos indivíduos. Seria desonesto fingir que o mundo público não afeta nosso dia-a-dia. Se há uma guerra, uma geração morre. Hoje, não só a guerra mas também a história são totais.
Em meus livros, tento mostrar como os personagens são afetados pelos assuntos públicos. Isso implica ter uma visão da história que, com frequência, não é a versão dos que estão no poder. Foi o que aconteceu com "Os Versos Satânicos". Os líderes religiosos acham que têm poder exclusivo sobre as histórias da religião, mas eu posso contar essas histórias como quiser.
Folha - Nos últimos meses, o sr. tem desafiado a sentença de morte. Anunciou, por exemplo, sua presença no lançamento de seu novo livro. Essa é uma nova atitude?
Rushdie - Quero ter essa atitude já há algum tempo, mas foi difícil convencer o esquema de segurança. Quando do lançamento do livro, estava determinado a não ser isolado dos leitores. É importante mostrar que não estou intimidado.
Folha - Ainda há uma ameaça real à sua vida?
Rushdie - A verdade é que não sei, mas a "fatwa" (condenação à morte) não foi revogada pelo governo do Irã e é importante que isso seja feito porque o maior perigo é de um assassinato a mando das autoridades iranianas.
Folha - Nos últimos anos, regiões em conflito, como o Oriente Médio e a Irlanda do Norte, pareciam avançar em direção à paz. Mas houve um retrocesso. O radicalismo é mais poderoso que a paz?
Rushdie - Creio que são fases de um amplo processo. No caso da Irlanda do Norte, parece claro que haverá um processo de paz. Não porque o IRA (Exército Republicano da Irlanda do Norte) será pacificado, mas porque a população está cansada de guerra. Para o IRA, no entanto, é difícil aceitar uma paz que não envolva a unificação da Irlanda. Essa é sua razão de ser.
No caso do Hamas, era previsível que o grupo tentaria destruir o processo de paz. Se houver paz na região, se houver um Estado palestino, não haverá lugar para a lógica de um grupo como o Hamas. Mas, se o povo palestino perceber que o grupo está empenhado em destruir o processo, porque para ele a guerra é necessária, isso terá um efeito negativo. Tanto o IRA quanto o Hamas estão numa armadilha. Em ambos os grupos, parece haver uma ruptura entre as alas política e militar. Não sou otimista a curto prazo, mas, a longo prazo, sim.
Folha - Com frequência, os muçulmanos afirmam que são vítimas de preconceito. Até que ponto isso é verdadeiro?
Rushdie - Acho que cabe a eles contribuir para o processo de compreensão. Se há um atentado suicida em Israel e nenhum líder religioso muçulmano do mundo o condena, essa é a melhor maneira de ser incompreendido. Se olharmos para as grandes conquistas da cultura islâmica, todas aconteceram há mais de 500 anos. Era uma cultura vibrante, hoje sufocada pela ideologia religiosa. Sacerdotes não devem governar países.
Folha - Mas essa parece ser a tendência entre os muçulmanos.
Rushdie - Sim, o fundamentalismo islâmico está crescendo, mas me parece que as pessoas o apóiam menos por fanatismo e mais por decepção com a política ortodoxa. A melhor maneira de combatê-lo é elevar o nível de justiça social.
Folha - Os países ocidentais poderiam ajudar nisso?
Rushdie - Sim.
Folha - Mas não o fazem...
Rushdie - É verdade. No entanto, nasci na Índia e sei quão fácil é culpar o Ocidente por tudo que não dá certo nos países do Terceiro Mundo. É parte do processo de liberdade que você assuma controle sobre sua vida.

Continua à pág. 5-5

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