São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A dimensão moral da literatura

OTÁVIO DIAS
DE LONDRES

A condenação à morte de Salman Rushdie pelo fundamentalismo islâmico representou uma ameaça não só à sua integridade física como também à sobrevivência de sua literatura. Desde 1989, ele não havia publicado nenhum romance. "O Último Suspiro do Mouro" representa sua volta à ficção "em grande escala", segundo suas próprias palavras.
Os motivos foram as constantes mudanças de endereço por motivos de segurança e a necessidade de articular uma campanha de protesto contra o governo do Irã. "Perdi dois anos e meio falando com políticos, o que não é minha ocupação favorita", diz.
A seguir, Rushdie fala sobre seu assunto preferido: literatura.
(OD)
*
Folha - "Repetindo: desde o momento da minha concepção, como se fosse um visitante de uma outra dimensão, outro tempo, estou envelhecendo duas vezes mais depressa do que este velho mundo e tudo e todos que nele há", diz Mouro, protagonista de seu novo livro. Quão autobiográfico é esse romance?
Salman Rushdie - Não é nada autobiográfico e, ao mesmo, o é completamente. O personagem não tem nada a ver comigo, com minha experiência de vida. Nesse sentido, é um dos menos autobiográficos de meus livros. No espírito, no entanto, esse último livro é bastante pessoal. A emoção, os sentimentos presentes em "O Último Suspiro do Mouro" vêm em parte do que aconteceu comigo nos últimos anos.
Folha - Como assim?
Rushdie -Imaginei ter nesse livro uma superfície alegre, com muita comédia e fantasia e, por baixo, uma tristeza. Teria sido fácil escrever um livro sombrio e estava determinado a não fazer isso. Escrevi o livro da maneira mais engraçada que pude, mas no fundo há uma escuridão. Nesse sentido, ele é autobiográfico.
Folha - Mas a idéia do tempo correr duas vezes mais rápido tem a ver com sua experiência pessoal?
Rushdie - Tudo o que aconteceu nos últimos anos me deu, em certos momentos, uma sensação de incrível aceleração, de que as coisas pareciam se mover com incrível velocidade. Em outros momentos, houve um sentimento de completa estagnação. Além disso, muitas pessoas nos nossos dias têm a sensação de que a história está acelerada, de que as coisas estão indo rápido demais. Então, resolvi colocar isso no livro. Agora, se há um personagem com o qual me identifico é Aurora, a mãe do Mouro.
Folha - Por quê?
Rushdie - Por causa de sua relação com seu trabalho, a pintura. Suas idéias sobre o ato de pintar são parecidas com as minhas em relação à escrita. O tipo de pintora que ela é, é o tipo de escritor que eu gostaria de ser. A oposição entre imaginação e observação, por exemplo, é algo que divide Aurora. No meu caso, sempre senti que a literatura tem de ter uma raiz na realidade e a imaginação deve florescer a partir daí. Um divórcio total da realidade não vale a pena.
Também me identifico com o desejo enciclopédico de Aurora, o desejo de colocar o mundo inteiro em sua tela. Quando criança, ela pinta as paredes de seu quarto e o mundo todo está lá, exceto Deus.
Folha - Por que exceto Deus?
Rushdie - Porque não há lugar para Deus em minha pintura. Prefiro ficar longe da religião. Aurora diz que interessa-se por pintar pessoas que não têm Deus. Essa também é minha visão. Tenho a clara sensação de que existe uma dimensão moral na literatura. A questão é como construir uma visão moral do mundo sem o suporte da arquitetura da religião. Essa é uma questão fundamental do século 20, sobre a qual estou debruçado.
Folha - Quais são os desafios da literatura nos dias de hoje?
Rushdie - O grande desafio é acompanhar as mudanças do mundo. A maneira como o percebemos hoje é radicalmente diferente da maneira que um autor do século passado o percebia. A questão é não permitir que a ficção fique parada no tempo, é descobrir como fazer uma novela, em termos de forma, linguagem ou método, que capture a nova realidade. É assim que entendo o projeto do realismo. Tento encontrar métodos por intermédio dos quais nossa percepção do mundo se reflita. E esses métodos podem ser não-realistas porque, sob diversos aspectos, o século 20 não é realista. Ele é bizarro, extraordinário.
A própria palavra "novela", em inglês, deriva da palavra "novo". Portanto, é essencial que a novela traga algo de novo. Agora, só novidade por si só não basta. É até fácil, na verdade. O difícil é fazer um livro em que a imaginação cresça a partir de uma realidade externa.
É mais difícil fazer isso agora porque, em muitos lugares, as pessoas prestam menos atenção à novela. Em muitos países, os autores têm a sensação de estar marginalizados, de não estar mais no centro da conversação.
Folha - Na realidade de hoje, que aspectos o sr., como autor, destaca como instigantes para a literatura?
Rushdie - Já falamos sobre a questão da aceleração do tempo. Isso amedronta as pessoas, essa sensação do tempo estar fora de controle, de não termos tanto tempo quanto imaginamos.
A chegada em nossas vidas de coisas como o vírus da Aids fez com que as pessoas começassem a pensar na morte enquanto ainda muito jovens. Uma geração abaixo da minha cresceu com essa extraordinária ligação entre sexo e morte. Isso é completamente novo na história humana, o fato de o ato de amor e da procriação conter a possibilidade da morte.
Também não há mais figuras gigantes na história. Um dos personagens de meu novo livro, diz, em determinada passagem, que a história é uma tragédia cujos atores são palhaços. Hoje temos tragédias de escala global em que os protagonistas são figuras farsescas.
Outra questão é a violência. Não é por acidente que o cinema de Hollywood tem se tornado cada vez mais violento. Violência = diversão = Quentin Tarantino.
Não falo da violência em massa, do extermínio dos judeus ou das guerras mundiais, também presente em outras eras. A violência atual me parece mais íntima. É como um fatricídio. É a violência da Bósnia, o assassinato de seu vizinho. Nos últimos 20 anos, as pessoas na Índia têm matado crianças que brincaram com seus próprios filhos na véspera.
Essa violência íntima, cuja semente está dentro de nós, me parece relevante. É um grande erro dizer: "Aquelas pessoas são violentas, eu não sou assim". É importante perceber que você também é assim e que, se eles podem ser violentos, você também pode. Se você achar a violência dentro de você, pode entender o que a motiva, o que a estimula ou a contém.
Folha - Essa é sua primeira novela desde "Os Versos Satânicos" e de sua condenação à morte. Como ela se encaixa na totalidade de sua obra?
Rushdie - É muito cedo para dizer. A recepção foi muito boa, inclusive na América Latina e acho que isso tem a ver com o fato de o livro ter uma dimensão espanhola, na parte cujo cenário é a Espanha, e portuguesa, nas cenas que se passam em Goa. Para mim, ele é importante porque foi uma maneira de mostrar que tenho condições de seguir em frente e de escrever um bom livro, um livro que não é incompleto, que apresenta uma orquestra inteira. Ele também é o ponto culminante de meu processo literário dos últimos 20 anos. Lida com idéias presentes desde o meu primeiro livro e sua linguagem é resultado de uma busca em que estive envolvido desde o começo.
Se há uma diferença, é no que diz respeito à emoção que o livro causa nos leitores. Essa profundidade emocional extra é algo que me orgulha. Ele é escrito de maneira que a emoção é mais direta, algo que queria explorar desde "Os Versos Satânicos".
Folha - Quanto tempo o sr. levou para escrevê-lo?
Rushdie - Foi meu principal projeto nos últimos cinco anos. Mas nesse período também escrevi "Leste, Oeste", uma compilação de histórias curtas, e gastei dois anos e meio falando com políticos, o que não é minha ocupação favorita. Até que percebi que era bobagem permitir que esse negócio desagradável se colocasse no caminho do que mais amo fazer.
Folha - Esse livro é cheio de imaginação, de cenas fantásticas. Que influência a literatura islâmica, como por exemplo "As Mil e Uma Noites", tem em sua literatura?
Rushdie - Eu não descreveria "As Mil e Uma Noites" como literatura islâmica, porque na maioria dos países do mundo islâmico, essa obra é proibida. Se essas histórias tivessem sido escritas por um autor contemporâneo, ele estaria em sérios apuros. Mas sou muito influenciado por elas. Essas histórias viajaram para o Leste, quando os muçulmanos invadiram a Índia e tornaram-se parte de nossa tradição. Também são responsáveis pela literatura latino-americana, porque foram levadas pelos muçulmanos para a Espanha e, de lá, exportadas para a América Latina. De alguma maneira, somos todos filhos das "Mil e Uma Noites", seja García Márquez ou eu.
Folha - Que diferenças e que semelhanças o sr. vê entre sua obra, onde a imaginação tem um papel importante, e o "realismo mágico" de García Márquez?
Rushdie - Acho que há tantas semelhanças entre as culturas da América Latina e da Índia que não me surpreende que existam similaridades entre seus autores. São ambos grandes lugares, os países são vastos. Ambas as regiões têm um passado colonial, embora diferentes. Línguas coloniais convivem com idiomas indígenas anteriores e isso provoca um atrito e uma mistura. A religião também é muito presente em ambos os lugares.
Também são países que passaram por revoluções, ditaduras, enorme corrupção. Em ambas as regiões, há enorme disparidade entre o mundo dos ricos e o resto das pessoas. Finalmente, esses países encontram-se entre o passado e o futuro.
Folha - E as diferenças?
Rushdie - Acho que García Márquez é mais simples e puro em sua linguagem. Meu estilo tende a ser mais complexo. É bem possível que ele seja o melhor escritor do mundo no momento. Não discordaria dessa afirmação. Uma qualidade particular de sua obra é que, em "Cem Anos de Solidão", por exemplo, ele pega o mundo do vilarejo, as atitudes daquele mundo, e dá a ele preferência sobre o mundo da grande cidade. A realidade do vilarejo é mais importante que a da cidade. Nesse aspecto, ele é o oposto de mim. Eu sou um garoto das cidades. O espírito de minha literatura vem de metrópoles como Bombaim ou Londres.
Folha - Há irreverência na maneira como o sr. utiliza a língua inglesa. Qual é sua primeira língua?
Rushdie - Minha língua natal é urdu, mas hoje o inglês é a língua que melhor utilizo. Ainda falo urdu e hindi, mas nunca escrevi nessas línguas.
Folha - O fato de o sr. não ser inglês lhe possibilita usar a língua de maneira mais livre?
Rushdie - O fato de eu ter a música de outras línguas na minha cabeça me permite brincar com o inglês. Em um mundo em que se fala vários idiomas, as pessoas aprendem a brincar com eles. Se você fala três línguas, pode começar uma sentença numa delas, passar para outra e terminar na terceira. Isso é muito comum na Índia. Eu cresci nesse ambiente e, quando comecei a escrever, explorar essa possibilidade foi natural.

Continua à pag. 5-6

Texto Anterior: Um escritor desafia a história
Próximo Texto: Khomeini condenou Rushdie
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.