São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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Contradições refletem a frieza de Hillary

CAMILLE PAGLIA
ESPECIAL PARA A "THE NEW REPUBLIC"

Cena 1: 4 de dezembro de 1995. Seguida por câmeras de televisão e sorrindo animadamente, Hillary Rodham Clinton conduz repórteres no giro anual da Casa Branca promovido pela primeira-dama.
Enquanto aponta objetos pendurados nas árvores enfeitadas, depara com uma surpresa preparada para ela pelos cozinheiros da Casa Branca: uma réplica da casa onde passou a infância, em Park Ridge, Illinois, feita de pão de gengibre.
Hillary olha o interior da casa, iluminado com luz elétrica. As câmeras se aproximam para um close, e sua expressão endurece.
A parede de seu quarto foi retirada, e vários milhões de pessoas estão olhando sobre seu ombro, penetrando no recanto mais íntimo de sua adolescência.
Como que querendo nos expulsar da casa, ela exclama seu espanto diante de uma minúscula placa de rua e depois começa a contar uma história sobre como sua casa era voltada ao norte: a neve sobre o gramado à frente da residência Rodham durava o inverno todo, mais do que em qualquer outro lugar na rua. O boneco de neve de sua família era o único que só derretia com a chegada da primavera.
Cena 2: 26 de janeiro de 1996. Como aristocratas romanos no Coliseu, dois correspondentes da CNN se reclinam em cadeiras dobráveis na calçada em frente ao edifício da Corte Federal em Washington. Atrás deles, uma multidão de policiais e manifestantes seguram uma faixa azul gigantesca dizendo: "É uma questão de ética, imbecil!".
O mundo aguarda a chegada de Hillary Clinton, que se tornou a primeira primeira-dama intimada a prestar depoimento diante de um grande júri. Uma limusine pára. Dela sai não Hillary, a advogada sagaz ou Hillary, a mãe e dona-de-casa feliz, mas Hillary, a estrela de cinema glamourosa e radiante.
Seus cabelos loiros estão arrumados num penteado dramático, sedutor. Ela veste um casaco comprido de veludo negro, enfeitado com brocado dourado. Com a cabeça erguida, caminha até os microfones e cumprimenta os representantes da imprensa como se fossem amigos queridos, vindos para lhe desejar boa sorte.
Depois, como Mary, rainha da Escócia, a caminho da forca, ela se dirige para seu difícil encontro de quatro horas com o promotor independente Kenneth W. Starr.
As duas cenas, superficialmente tão diferentes, contêm a chave para a compreensão de uma das personalidades mais fascinantes de nossos tempos, mas também mais enigmáticas.
Rainha do gelo, rainha das transformações: a "grande esperança feminista branca" é uma criatura muito mais conflituosa e autodestrutiva do que compreendem seus admiradores ou críticos.
Fazendo associações livres sob o olhar incômodo do público, contemplando uma versão açucarada da casa onde passou sua infância, Hillary se assemelhava a outra figura pública conflitante arrastada de volta ao passado: Richard Nixon evocando sua "santa" mãe durante seu discurso de despedida da equipe da Casa Branca.
Hillary, tentando recriar o calor humano das férias em família daquele passado distante, só via o boneco de neve que é ela mesma: uma consciência orgulhosa, solitária, isolada, em guarda e sempre alerta, uma presença poderosa que mesmo quando realiza grandes coisas sempre paira à margem das experiências coletivas.

CONTINUA à pág. 1-24

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