São Paulo, domingo, 17 de março de 1996
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Forças Armadas e poder civil

ALBERTO CARDOSO

Muito tem sido escrito acerca da subordinação das Forças Armadas ao poder civil no Brasil. Sempre com boa-fé, algumas opiniões são baseadas em estereótipos. Daí ser importante conhecer alguns aspectos básicos da profissão militar, como o espírito de corpo, o sentido de disciplina, ordem e hierarquia, o domínio e a responsabilidade perante a sociedade.
O primeiro define o orgulho dos militares pela organização onde servem e o sentimento aglutinador de pertencer a um grupo profissional e de comungar ideais e valores com os camaradas. Sentem-se membros de uma entidade que se distingue pela natureza coletiva do seu serviço.
Vivem um ambiente que os leva a raciocinar como corporação que depende, para se fazer útil, de coesão, fruto de arraigado senso de disciplina, hierarquia e camaradagem, e tão indispensável para a eficácia quanto a condição de ordem.
No Brasil, a disciplina militar não é a estereotipada por Elias Canetti com o aguilhão da ordem. Ao contrário, pratica-se a disciplina consciente -a iniciativa obediente, oposta da obediência passiva. Incentiva-se o subordinado a decidir segundo normas e regulamentos tão genéricos quanto possível, como estímulo à iniciativa e ao discernimento.
O sistema não tende a criar dependentes de ordens nem a permitir arbitrariedades insolúveis, dados os mecanismos regulamentares de defesa dos subordinados. As manifestações de disciplina e subordinação são altivas. Atitudes semelhantes envolvem promoção e hierarquia. Uma é meio para dinamizar, rejuvenescer e manter capazes os quadros da hierarquia. A outra é canal para veiculação de decisões, supervisão, fiscalização e correção de atividades.
A visão institucional da hierarquia desestimula a lealdade pessoal aos que ocupam posições de chefia; ser leal ao princípio da autoridade que os cargos simbolizam. A disciplina dá consistência à cadeia hierárquica; ambas são meios para manutenção da ordem. A perspectiva da promoção não é inibidora de condutas individuais. A concepção que encoraja iniciativa e altivez desvaloriza os subservientes nas avaliações para o ascenso.
O domínio das Forças Armadas é a administração da segurança do país. Da externa, contra ameaças concretas ou latentes ao território. Da interna, participando do zelo da nação com sua integridade, tranquilidade e ordem, com a continuidade das instituições políticas e sociais e com a afirmação de sua maneira de ser.
Para tanto ela lhe confia os meios de defesa, conforme a capacidade do Estado e as prioridades do governo para a distribuição de recursos.
O militar deve estar em condições de prestar contas à nação de como vem fazendo uso dos meios de defesa e da sua confiança. A maneira mais positiva é preparar-se diuturnamente para a defesa externa e interna e, dessa forma, manter as Forças Armadas como instrumento dissuasor.
Segundo o pensamento militar brasileiro, quando um país se vê obrigado a empregar as armas de uma forma direta e preponderante, o faz para corrigir um fracasso inicial da sociedade, do Estado e das Forças Armadas em particular -a incapacidade para dissuadir possíveis inimigos.
Nesse conceito há um motivo de realização profissional, que anula o argumento de que a atividade militar é inerentemente frustrante, por dever sua existência a uma finalidade não almejada, a guerra. O militar que a nação deseja cumpre seu papel evitando-a pela dissuasão.
Há um ângulo da personalidade militar cuja compreensão é fundamental. O militar brasileiro dedica à nação precedência absoluta na escala de lealdades. Projeta essa atitude no seu delegado maior, o presidente da República, o que favorece a interiorização do dever constitucional de subordinação ao comandante supremo e o coloca no topo das pirâmides hierárquicas das três Forças. A satisfação cresce quando o presidente tem gosto pelo comando e o exerce efetivamente e torna-se completa quando se percebe que se mantém leal à nação.
Nenhuma das tentativas ou concretizações de intervenção no processo político se deveu a interesses corporativos da caserna. Todas decorreram de avaliações (não cabe aqui discutir se certas ou não) sobre as duas lealdades -a presidencial e a castrense- à nação, em período histórico de imaturidade política e em espaço vazio de providências institucionais.
Da República Velha ao impeachment, a nação veio amadurecendo politicamente e, com ela, as Forças Armadas. Acabaram-se as lideranças caudilhescas porque, da mesma forma que o mito político não deve ser uma pessoa, mas um partido, também nas Forças Armadas brasileiras atuais o mito é a instituição, face militar do Estado. Elas têm convicção de que, por meio do governo, o Estado dispõe de instrumentos institucionais para a correção de conjunturas.
Essa percepção veio com o testemunho próprio de que o Estado transcende aos governos e de que a ele cabe o domínio do estrutural, e a estes, do conjuntural. Aguçou-se quando os militares se deram conta de sua condição de servidores de fato do Estado; verdade aceita tacitamente antes da Constituição de 1988, que veio à discussão justamente porque a Carta a negou, classificando-os de servidores públicos do governo.
A formação da consciência da integridade e permanência do Estado e da temporariedade dos governos, associada à de servidor do Estado, apartidário, implantou na mente do militar brasileiro a certeza de que não lhe cabe a solução das divergências que envolvem decisões de autoridade e poder, característica da política.
Muito menos a imposição do atendimento das necessidades do seu grupo, as quais ele sabe fazerem parte das atenções da cadeia de comando (encimada pelo comandante supremo), em cujos critérios confia.
Ficou fácil para as Forças Armadas abstrair seu comandante supremo, o chefe do Estado, do chefe de governo, embora ambos coexistam no presidente da República. Assim mantêm a visão mais profunda sobre o continuum do Estado -o passado que cria as tradições, o presente que delineia as tendências e o futuro pelo qual a nação anseia e para o qual aponta com o voto. E percebem, com clareza, sua subordinação ao poder civil.

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