São Paulo, terça-feira, 19 de março de 1996
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De revólver na mão, mulheres caem no choro

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Voluntárias a serviço do Exército brasileiro, elas viraram soldados depois de um treinamento simples, de 45 dias. São médicas, farmacêuticas, dentistas com idade entre 25 e 35 anos, pioneiras que vão servir por um ano na área de saúde das Forças Armadas.
Fizeram tudo direito nos exercícios de educação física, nas marchas, e tiveram, na média, desempenho superior ao dos homens. Mas aconteceu de algumas -dentre as 635 que juraram bandeira- chorarem ao atirar pela primeira vez com uma arma de fogo.
Não estão, absolutamente, em treinamento de guerra -a atuação tem até um quê de simbólico, pois não são sequer obrigadas a viver nos quartéis-, mesmo assim, choraram. Reação intrigante, a despeito do que possa encerrar de esperado e natural o caso.
Aconteceu também -mais intrigante ainda- de fazerem reivindicação inédita no mundo rude dos batalhões e quartéis, das formações e continências: pediram a instalação de boxes privativos nos vestiários. Não se acostumaram com latrinas e chuveiros abertos, usados pelos soldados homens.
O coronel responsável pelo treinamento das moças estranhou o pedido, só atendido depois de uma consulta a sua própria mulher. De fato, como se justifica tal pudor em mulheres tão jovens, um terço delas casadas? Não pode ser simples vergonha de expor seus corpos umas às outras.
Apesar de haver privacidade nos alojamentos e banheiros femininos mundo afora -mulheres não urinam em mictórios abertos, como homens fazem, um ao lado do outro-, nada mais natural do que um vestiário cheio de mulheres nuas em academias ou escolas.
Desse ponto de vista, o pedido das recrutas brasileiras parece indicar outra coisa. Uma necessidade de defesa da própria afirmação de que são mulheres, seres cuja vida não se dá do exterior para o exterior: do órgão sexual já todo exposto para a tigela fria do mictório devassado, ofensivo.
Mulheres, enfim, de vida mais introspectiva, porque biologicamente ocorrendo no interior, nas entranhas, nos esconderijos de úteros e canais por onde entram e saem coisas -de tampões a pênis e bebês.
Parte desse pavor da exposição será, sem dúvida, resultado de um condicionamento cultural. As mulheres-soldados de estados militaristas, em que o serviço militar é obrigatório para ambos os sexos, talvez se importem menos com isso.
O mesmo condicionamento cultural -e o mesmo pavor da exteriorização- daria na inadequação entre mulher e arma. O sistema "feminino" é, por tradição, o da não-agressividade, o da índole pacífica.
Mas, na verdade, as recrutas, novatas de revólver na mão, podem ter chorado porque "as armas de um soldado são o que se pode chamar de verdadeiros membros de seu corpo" -como dizia Cícero sobre as armaduras dos soldados romanos. A arma viraria um membro por demais exposto do corpo das mulheres, uma espécie de pênis insuportável.

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