São Paulo, terça-feira, 19 de março de 1996
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Compositor funde pop e poesia

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REDAÇÃO

Exatos 30 anos depois do surgimento do Velvet Underground, que, sob a batuta de Andy Warhol, fundiu pela primeira vez arte e pop, Lou Reed parece ainda ter muito a dizer. O novo disco é um apanhado de pro0vas inquestionáveis de que a música pop pode, sim, ser terreno fértil para as mais sofisticadas formas de poesia.
Riquíssimo em melodias e arranjos, o disco não faz sentido sem as letras. Lou se mostra cada vez mais acurado como exímio construtor de imagens pela palavra.
Em "The Proposition", por exemplo, Lou prega a equivalência apriorística entre todas as coisas, aceitando-as simplesmente. Profere que, "da mesma forma que Aids precisa de uma vacina, em algum lugar uma vacina precisa de Aids".
Parece ser o primeiro artista a classificar o vírus HIV como mero agente natural, e não praga divina à espera de anjos redentores (à moda de Tony Kushner) ou mórbido canalizador de culpas (como o Jonathan Demme de "Filadélfia").
Não se pense com isso que a música é irrelevante no disco, farto aliás em surpreendentes melodias, como em "Finish Line", dedicada ao colega de Velvet Sterling Morrison, morto em 1995.
Exemplo maior é "NYC Man", um verdadeiro espanto: começa com gotas estilizadas de chuva, que se transformam num delicado soul à Motown perpassado pelo canto-fala de Lou; aí, namora a dance music de Neneh Cherry, esbarra nas gaitas folk de Bob Dylan -sem gaitas- e cita Shakespeare em batida de rap, para desaguar em estilizadas buzinas de carro na madrugada de Nova York, que ele ama.
E há a arte. "Trade In" reprocessa Warhol, casando música, letra e projeto gráfico: os versos, no encarte, deslizam pela foto do rosto de Lou, decadente, precocemente envelhecido, ainda retendo traços de perversidade. As palavras que correm em seu rosto expõem a divisão da persona de Lou em duas, uma morta e outra recém-nascida.
Declara-se um "novo homem", renascido das cinzas do outro que acaba de fenecer. Mas Lou continua o mesmo, tão incisivo quanto o jovem transgressor de 1967.
(PAS)

Disco: Set the Twilight Reeling
Artista: Lou Reed
Lançamento: Warner (importado)
Onde encontrar: Lado A (tel. 011/258-5911)

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