São Paulo, quarta-feira, 20 de março de 1996
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"Baianocracia" impõe disciplina à burguesia

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ainda que pouco exaustivo, o trabalho de porteiro de prédio deve ser dos mais tediosos. Ficar de noite naquelas guaritas desumanas, horas a fio, talvez tendo ainda de pegar outro emprego no dia seguinte, não é o ideal para ninguém.
Dito isto, posso desabafar um pouco minha antipatia por esses trabalhadores. Não que a culpa seja deles; veremos. Mas outro dia tive uma experiência bem irritante.
Eu ia visitar um amigo que mora num desses condomínios fechados. A moda dos condomínios fechados é claramente explicável por razões de segurança, mas não deixa de ser antipaticíssima. Só falta pedirem RG para você entrar. Um anúncio incrível aparece nas páginas de imóveis dos jornais. É de um condomínio chamado "Place des Vosges", no Morumbi. A única diferença com a famosa praça de Paris, dizem os incorporadores, é que a nossa não é pública.
Tanto pior, digo eu. Porque o que se perde, na mania dos condomínios, é exatamente o aspecto público, civil, casual da vida urbana. O prazer de sair de casa e encontrar uma padaria na esquina, de cruzar uma praça onde qualquer pessoa, qualquer tipo social pode aparecer à nossa frente, é uma das coisas bonitas da vida urbana; dá ao cotidiano um quê de civilidade, de arejamento, de estímulo intelectual.
Não é à toa que um dos maiores prazeres do turismo é o de simplesmente perder-se pelas ruas, impregnar-se de gente e de comércio, de barracas e curiosidades de calçada. Bom, isso é difícil em São Paulo, reconheço. Daí os condomínios, as praças fechadas, os lugares cercados aonde só se vai quando se sabe exatamente o que se quer fazer ali. Cinema, shopping center, loja: você sai de casa e entra num lugar desses, com objetivo claro, sem dar chance para a surpresa, para o devaneio.
Bem, eu estava de carro na entrada do condomínio onde mora meu amigo, e topei com uma fila. À esquerda, a entrada para moradores. À direita, a entrada para "visitantes", na qual me situei. Mas havia uma fila. E a fila de carros não andava. É que à minha frente havia uma senhora num Santana cor de vinho. Ela estava tendo algum problema de comunicação. Tinha dito ao porteiro que iria visitar fulana, no apartamento X. O porteiro "interfonava". Ninguém atendia. Ninguém se comunicava.
Talvez o porteiro tivesse entendido mal o número do apartamento. Talvez a senhora do Santana não se lembrasse do número do apartamento. Talvez a senhora do Santana não se lembrasse do número. Talvez a mulher do apartamento tivesse saído. Ou morrido com uma dose de veneno de rato. Talvez o interfone estivesse com defeito. Pensei em todas essas hipóteses, torci pela do veneno de rato, mas continuei esperando na fila. Dez, quinze minutos.
Até que me enchi, e saindo do carro pedi para que o porteiro me atendesse. Eu poderia perfeitamente entrar pela via dos "moradores", uma vez anunciada minha presença, e autorizado meu ingresso, pelo interfone.
Foi impossível. Primeiro tinha de ser resolvido o problema com a senhora do Santana cor de vinho. Eu que esperasse. Esperei. Mais dez minutos, e minha entrada naquele paraíso predial, naquela Walhallla em estilo neoclássico, naquele condomínio olímpico, naquele reduto exclusivo de nobres, foi permitida. Avancei com o carro rumo às grandes barrocas do portão, quando fui barrado novamente.
"O estacionamento está lotado", avisou-me o porteiro. Eu teria de estacionar fora do mágico reduto; coisa que podiam ter-me dito antes. Obedeci, e entrei.
Contratempo nada importante, afinal. Mas também significativo, por várias razões.
Fiquei irritado com o porteiro do prédio, mas não percebi a novidade em curso. É o espírito burocrático, suíço, tomando conta das classes populares. De modo politicamente incorreto, mas exato, o amigo a quem relatei meus contratempos resumiu a coisa: "é a baianocracia".
Vai longe, com efeito, o tempo do "jeitinho", da acomodação, do improviso. Ou da mera flexibilidade intelectual. Não só porteiros de prédio, mas balconistas de videolocadora, funcionários públicos, empregados de banco, ninguém facilita as coisas hoje em dia. O respeito às regras assume, no Brasil, rigores de inverno dinamarquês.
Experimente chegar um minuto depois do horário de fechamento da locadora para devolver um vídeo. O garoto desleixado do balcão irá comportar-se como um burocrata dos correios em Berlim. "Nein, nein, nein".
O curioso é que, uma vez, eu estava na Alemanha, e tinha um pacote para mandar pelo correio. Meu pacote estava mal feitíssimo. O homem do correio olhou aquela vaga forma de papelão desconjuntada, riu e disse: "mas isso aí está indo para o Brasil... uma longa viagem!!" Tomou de durex e barbante, e refez o pacote para mim, transformando aquilo que parecia uma gelatina de jornal velho num perfeito bloco de mármore pardo. Deu uma grande risada germânica, e é claro que não estava em pauta dar gorjeta.
A burocratização do cotidiano, enquanto isso, cresce a passos largos no Brasil. Experimente abrir um crediário, pagar uma prestação ou apenas fazer um cheque para o supermercado. Filas, fichas, comprovações, documentos, notas fiscais em cinco vias, é a Prússia. Falam em desestatização. Gostaria que as empresas privadas -bancos, supermercados- se desestatizassem também.
Claro que entendo o processo. O porteiro não pode me facilitar a entrada no condomínio. Primeiro, porque seu dever é dificultar as coisas. Está lá para isso. Segundo, porque passou por um treino estalinista, ou prussiano, tanto faz, a disciplinar suas tendências atávicas à bonomia e à tolerância. Foi robotizado. Terceiro, porque sente algum prazer em dificultar as coisas. Ou seja: ele tem de enfrentar filas estúpidas no Inamps, na delegacia do trabalho; qualquer documento, qualquer atestado de cidadania lhe é um sacrifício de tempo e paciência.
Agora, ele está num papel de poder imaginário. É o porteiro. Vinga-se dos burgueses que, como eu, querem facilidades e confortos.
O caso todo é instrutivo. Cada vez mais, o "povão" é respeitador da lei, é disciplinado e burocrático. São evangélicos, vingativos, robôs, pouco importa. Já a classe média alta é quem está acostumada à indisciplina, a estacionar o carro em fila dupla, a dizer que "isso aqui é Brasil" etc.
Ao mesmo tempo, a classe média alta é desestatizante, liberal, confia numa passagem mágica do Brasil ao Primeiro Mundo. O legalismo da plebe é, entretanto, "moderno", "primeiro-mundista" e estatizado, burocrático ao mesmo tempo.
É que as classes privilegiadas entendem o liberalismo como uma ausência de regras, uma eternização de seus confortos informais, uma indisciplina de que sempre desfrutaram, mas que agora é sancionada pela ideologia. As classes baixas se aferram a um burocratismo que as oprime diariamente, para infernizar a vida dos burgueses de vez em quando.
Pelo menos no âmbito minúsculo, casual, cotidiano a que me refiro, é assim que se dá a luta de classes no brasil. Ou melhor, o rancor de classes, o desajuste de classes, enquanto as lutas mais sérias parecem estar escondidas em alguma gaveta empoeirada no Pontal do Paranapanema; coisa de que duvido também.

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