São Paulo, quarta-feira, 20 de março de 1996
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Pedro Almodóvar assume cinema de lágrimas

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

O sucesso de Pedro Almodóvar repousou, em grande parte, sobre um mal-entendido: seus filmes seriam quase todos, nessa visão, paródias cômicas da melosa tradição folhetinesca hispânica.
Em "A Flor do Meu Segredo", existe uma evolução do cineasta espanhol. Embora preserve elementos de humor, ele faz efetivamente um melô.
Alguns elementos. Existe uma mulher, Leo (Marisa Paredes), que escreve romances cor-de-rosa sob o pseudônimo de Amanda Gris. Ela tem um marido (Imanol Arias) por quem é apaixonada e que, visivelmente, a faz sofrer.
Leo decide escrever artigos para o jornal "El País", agora com um outro pseudônimo. Não por acaso, o primeiro deles é um ataque ferino a Amanda Gris. Curiosamente, a subliteratura de Gris será defendida por Angel, editor do jornal.
O uso quase abusivo de pseudônimos já nos situa num dos assuntos do filme: a multiplicação das personalidades e o consequente ocultamento do sujeito (Leo oculta seu nome pensando que sabe quem é; na verdade, o faz por não saber).
Eis então Leo jogada em descaminhos lítero-existenciais, nos quais acabam envolvidos praticamente todos que a cercam.
A começar por Angel, que se apaixona à primeira vista por Leo, sem saber que ela é Amanda, mas ao fim de algum tempo estará escrevendo romances cor-de-rosa.
Um segundo tema para o qual vale chamar a atenção é a das relações entre literatura e subliteratura. Leo provará, ao longo do filme, que pode se exercitar nos dois domínios.
Ela condena os romances cor-de-rosa pelo irrealismo, pela ausência de ruptura. Não são sentimentos o que existe ali, mas sentimentalismo, acredita Leo.
Pode ser. Mas Almodóvar nos chama a atenção para a contiguidade entre esses dois registros. Por desprezível que seja, a literatura (assim como o cinema) sentimentalóide traz em si o germe desse outro registro.
Não será um caso inédito: na experiência brasileira conhecemos a reviravolta ocorrida com, por exemplo, as composições de Lupicínio Rodrigues, que passaram, há alguns anos, de objeto de desprezo a objeto de admiração.
O que talvez seja difícil aceitar, nessa transição que ocorre com Almodóvar após alguns filmes menores, é ele ter assumido sem ambiguidades o império dos sentimentos, que mistura bom e mau gosto, kitsch e sublime, choro e riso.
Era fatal que isso acontecesse com um cinema em que a trama amorosa e o deslocamento que coloca em cena (pensamos ser algo e somos outra coisa, que nem sequer sabemos o que é) são centrais.
Diante do impasse em que estava o diretor espanhol há algum tempo, era o que se impunha: a evolução para o "cinema de lágrimas" de que falou Nelson Pereira dos Santos, ou a queda na inconsequência.
Pedro Almodóvar optou pela primeira, com a coragem, o talento e o sentido do uso das cores que, já se sabia, tem.

Filme: A Flor do Meu Segredo
Produção: Espanha, 1995
Direção: Pedro Almodóvar
Fotografia: Affonso Beato
Elenco: Marisa Paredes, Júan Echanove, Carmen Elias, Rossy de Palma, Imanol Arias, Joaquim Cortes
Lançamento: Top Tape (tel. 011/826-3066)

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