São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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Faeneratores

ROBERTO CAMPOS

Os romanos não possuíam bancos. Nos bons tempos heróicos do cidadão-soldado que lavrava o solo com a mão, a base da vida eram a terra e o gado (donde o termo "pecúnia"). E os lotes distribuídos aos veteranos para cultivarem com as suas famílias -dez "jugera", talvez menos de três hectares- seriam considerados chinfrins pelo nosso MST (Movimento dos Sem-Terra).
Mas, mesmo sem bancos (só mais de um milênio depois iriam desenvolver-se os instrumentos de crédito), não faltavam meios de financiamento. Seus agentes, os "faeneratores", eram profissionais que emprestavam dinheiro, frequentemente de gente "bem", que não queria aparecer. Emprestar a juros era permitido (havia até um limite de 12% ao ano...).
E, mesmo sem bancos, os romanos conheciam crises de crédito (como também os gregos, pois as primeiras medidas de alívio temporário aos devedores foram tomadas em Efeso, no século 3 a.C.). O endividamento dos pequenos agricultores foi o fole que soprou as guerras civis, de Mário e Sulla, e dos Gracos, e acabou liquidando a República, com César, um intelectual muito versátil.
César hesitou no recurso a medidas demagógicas, como o cancelamento de débitos, que Cícero, conhecido advogado de oposição, sempre cheio de razões morais, denunciava ferozmente.
No Império, no ano 33 da nossa era, Tibério enfrentou outra crise brava, criando um fundo de 100 milhões de sestércios para ser emprestado sem juros a devedores meritórios (era o Proer da época...). São antigos os problemas novos.
Por esquecê-los, o governo está, agora, numa entaladela: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Países responsáveis passam problemas de liquidez, bancos vão à breca, e, às vezes, os governos têm de intervir com dinheiro para evitar que tumores locais provoquem septicemia no sistema.
O Plano Real partiu do redescobrimento da experiência de 1923 -quando se adotou uma moeda paralela, o rentenmark, garantida em ouro e com juros, e em meses se liquidou a hiperinflação. A equipe do Real foi quase a mesma do Plano Cruzado, de 1986, com a diferença que, em 94, o governo teve condições de impor uma linha firme, que rendeu grandes dividendos políticos, a despeito de ausência de reformas estruturais.
Acontece, porém, que a desindexação e os instrumentos monetários e cambiais não bastam para curar o câncer da inflação. Servem para aliviá-lo temporariamente, e assim tornar menor a resistência à aplicação do tratamento básico. Este consiste, antes de mais nada, em reduzir os excessos de emissão de moeda ou, em última análise, os desequilíbrios dos gastos do governo (porque só esse tem o poder de criar moeda).
Na Alemanha de 1923, o aperto das despesas públicas foi violentíssimo. E em todos os casos de políticas antiinflacionárias bem-sucedidas houve um forte aperto fiscal, quando muito amenizado pelo uso de recursos externos.
Quando se reduz uma taxa de inflação aguda por meio da política de juros, ocorre uma crise de liquidez que aumenta dramaticamente a insolvência no setor produtivo. Desaparece o "imposto inflacionário" (com que o governo vai tapeando seus custos), e secam os ganhos com o "float" dos bancos e outras instituições financeiras.
Uma equipe econômica como a do governo, cuja competência e seriedade não estão em dúvida, não poderia deixar de prever esses efeitos na economia, e especialmente no sistema financeiro.
No Brasil, como o Estado é um monstrengo retardado, os problemas práticos da gestão pública são muito mais complicados do que nos países industrializados. As cifras oficiais são furadíssimas. Até mesmo em matéria fiscal e previdenciária, conforme revelaram os estudos das reformas constitucionais. Números do PIB tornaram-se piada. O governo nem sequer sabe direito quantos funcionários tem, e tropeça nas próprias pernas, até quando, para impressionar a opinião pública, dá a conhecer a lista dos maiores salários do funcionalismo. Filme dos trapalhões!
O governo não pode botar cara de virgem diante do buraco do déficit público de 95 (quando a arrecadação deu o mais formidável salto de todos os tempos), nem o Banco Central alegar inocência diante das travessuras dos bancos oficiais ou privados.
Nem sempre, evidentemente, há como prever fraudes. Os casos recentes dos grandes bancos internacionais Barings e Daiwa assumiram proporções inéditas devido a falhas inconcebíveis nos controles internos. Alguns anos antes, custou caro ao governo americano o desastre das instituições de poupança imobiliária (as Savings and Loans), e problemas semelhantes ocorrem hoje com as "jusen" no Japão.
No caso americano, houve uma legislação puxada ao populismo, que dava garantias federais excessivamente altas aos depósitos de poupança, o que gerou muita especulação e levou a critérios frouxos na qualidade das operações. Quando houve um aperto monetário, com súbita alta de juros, deflagrou-se uma grande onda de inadimplências no mercado imobiliário.
Esses casos, e outros, poderiam em teoria ser evitados. Mas nenhum deles era tão previsível, quanto às consequências, em um plano de estabilização monetária como o Real, num país há tantos anos dependente da droga inflacionária. Qualquer médico sabe o que acontece quando retira a droga de um viciado...
Infelizmente, no nosso caso atual, qualquer resultado é ruim. Fazer a CPI dos Bancos tem sérios inconvenientes. Mas não fazê-la, também, porque pode induzir o público a pensar que o sistema financeiro está muito frágil (o que não está) ou a imaginar que o governo tenha escândalos a ponto de explodir (o que tampouco é o caso). Os investidores estrangeiros já entraram em compasso de espera e, para os nacionais, aumentou a taxa de imprevisibilidade.
Distingam-se dois momentos na atuação do Bacen. Foi extremamente incompetente na "prevenção" da crise, e razoavelmente hábil na "administração" da crise. A fiscalização, baseada mais em perícia documental do que em análise de riscos, detectou tardiamente os problemas. E suas "intervenções temporárias" foram desastrosas, o que torna aconselhável, no futuro, a terceirização dessa atividade, como no exemplo do Banerj. Além disso, a sobredose de juros e a sucção exagerada de depósitos compulsórios fragilizaram o sistema. Entretanto, uma vez deflagrada a crise bancária, ela foi razoavelmente administrada pelo Bacen, com a ativação do Fundo de Seguro de Depósitos, a criação do Proer, o alargamento dos poderes de intervenção preventiva e a extensão da punibilidade aos controladores e auditores. O sistema sofreu abalos bem menores do que no caso do México, Venezuela ou mesmo da Argentina.
A implantação de mais uma CPI certamente não figura entre as tarefas prioritárias do Congresso. Elas costumam ser não um seminário para a busca da verdade, e sim um teatro para a exibição de personalidades. A primeira prioridade do Congresso deve ser a votação (ainda não concluída) do Orçamento, que é a principal justificativa da existência de parlamentos. A segunda é completar a votação de grandes reformas e sua regulamentação. A terceira é dinamizar as comissões permanentes -inclusive as de Finanças e de Fiscalização Financeira- que transformariam a supervisão do sistema bancário numa rotina preventiva e não num escândalo periódico. A quarta é cumprir o dispositivo constitucional de reformulação do sistema financeiro, objeto de numerosos projetos, que jazem no útero do Legislativo há oito anos.
Em suma, o Congresso já tem suficiente poder, foros e instrumentos para avaliar criticamente as deficiências do Bacen. E para legislar corretivamente. O que a CPI sobre o sistema financeiro fará é apenas trazer holofotes para o circo...

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