São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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Europeu faz 'tour sociológico' em favela

MAURICIO STYCER
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Desde 14h30, três jipes estacionados ao pé do Corcovado, no Cosme Velho (zona sul), aguardam a chegada de 17 franceses.
Após conhecerem o Cristo Redentor, eles serão conduzidos ao último -e mais impressionante- passeio turístico do domingo: uma visita à favela da Rocinha, considerada a maior da América do Sul.
Às 16h, o grupo aparece. Camilo Ramirez, o guia que conduzirá os franceses pelas vielas da favela, se apresenta rapidamente e dá ordens aos motoristas dos jipes para iniciarem a "viagem", segundo diz, ao "lugar mais seguro da cidade".
Às 16h15, as arborizadas mansões da Gávea já foram deixadas para trás, e os jipes sobem por uma estrada estreita, repleta de curvas e cujas margens são ocupadas por construções mal acabadas, feias, a maioria com tijolo aparente.
À frente do comboio de jipes, Camilo Ramirez começa a gritar de forma sincopada o que parece ser uma espécie de senha: "Gringo!!! Gringo!!! Gringo!!! Gringo!!!".
O grito tem o efeito de levar muitos moradores da favela a correrem à janela para ver o comboio passar. Alguns retribuem aos gritos de Ramirez com gritos semelhantes, como "Olha os gringos!!!" ou "Quanto gringo!!!". Outros, simplesmente, repetem o guia e gritam: "Gringo!!!", "Gringo!!!".
Cinema
Se fosse filmada, a cena caberia numa produção neo-realista que estivesse mostrando soldados norte-americanos entrando em qualquer cidade italiana destruída ao fim da Segunda Guerra Mundial.
No Rio de Janeiro, em março de 1996, trata-se apenas do início de mais uma excursão organizada pela empresa Jeep Tour, especializada em turismo ecológico e exótico.
Não é de hoje que as favelas fascinam os "gringos". Quando esteve no Brasil, em 91, a princesa Diana insistiu em ir à Rocinha. Este ano, Michael Jackson filmou cenas de um clipe no morro Dona Marta.
Mas, ao contrário do cineasta Spike Lee, que afirma ter pago aos traficantes para filmar o clipe de Jackson, a Jeep Tour jura que entra na Rocinha sem pagar um centavo para as associações de moradores ou para os traficantes que controlam o "movimento" no local.
Com ou sem pagamento, os gritos de "gringo!" deixam claro que quem está entrando na favela é um grupo de estrangeiros -e não de policiais disfarçados, por exemplo.
"C'est incroyable!"
Antes mesmo de os jipes estacionarem no alto da favela, junto à quadra de ensaios da escola de samba Acadêmicos da Rocinha, os franceses deixam escapar as suas primeiras exclamações, como a tipicamente francesa "C'est incroyable!!!" ("É inacreditável").
Ao descerem dos jipes são abordados por crianças e adolescentes, que nada pedem, mas riem deles e repetem os gritos já ouvidos em outros cantos: "Nossa, quanto gringo", diz rindo uma menina.
Uma outra, de não mais de 13 anos, começa a apontar para os estrangeiros e, rindo muito, "explica" a uma amiga quem são eles: "Este aqui é meu pai, esta é minha mãe, este é meu irmão, este é um tio meu e esta é uma tia."
Na quadra, que na véspera foi cenário de um baile funk e ainda está sendo limpa, Ramirez faz uma espécie de discurso de apresentação, repleto de exageros e imprecisões.
"Esta é mais maior favela do Brasil, 300 mil pessoas vivem aqui (são 150 mil). A maioria das pessoas ganha US$ 100 por mês (não há estudos a respeito). As famílias têm entre cinco e oito filhos, em média (exagero). E, mais importante, 97% dos que vivem aqui são trabalhadores honestos", diz.
O guia conclui com seu bordão favorito: "A favela é o lugar mais seguro da cidade. Aqui dentro ninguém rouba. É a lei da favela."

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