São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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Máquinas cartesianas

FÁBIO CARVALHO HANSEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Páginas de importância aparentemente secundária na filosofia moderna, as polêmicas acerca da "alma dos animais" constituem um índice expressivo de alguns dos temas fundamentais do século 17, dentre eles, a imortalidade da alma, a imaterialidade da mente e o ideal do mecanicismo científico.
Antes da separação radical operada por Descartes entre as substâncias extensa e pensante, ou o corpo e a alma, o conceito de alma dos animais não apresentava problemas teóricos mais sérios. Até então, a corrente dominante do pensamento inspirava-se na tradição aristotélica, que concebia gradações da matéria inerte à matéria animada, passando pelas plantas, com suas funções nutritivas e reprodutivas, e pelos animais, dotados também da sensação e do movimento. A razão, Aristóteles a reserva ao homem.
Ao separar absolutamente o corpo e a alma, ou, nos seus termos, a substância extensa e a substância pensante, Descartes inaugura uma física estritamente mecanicista, em que não há mais lugar para as causas finais aristotélicas, mas onde todos os fenômenos físicos se explicam pelas causas eficientes dos mecanismos. Assim, tudo aquilo que diz respeito apenas à extensão, como é o caso dos animais cartesianos, assemelha-se a uma máquina. Os animais, afirma Descartes no "Discurso do Método" (1637), funcionam "segundo a disposição de seus órgãos, assim como um relógio, que é composto apenas de rodas e molas".
Essa tese, que passou a ser conhecida como a doutrina dos animais-máquina, tem repercussões importantes no cartesianismo: se os animais se submetem às leis do mecanismo, eles participam apenas da realidade extensa e, por isso, não pensam. Numa carta de 5 de fevereiro de 1649, Descartes escreve a Henry More que "não existe prejuízo ao qual estejamos mais acostumados do que aquele que desde a nossa infância nos persuadiu de que os animais pensam". De acordo com Descartes, este preconceito origina-se de um erro, muitas vezes comum aos argumentos por analogia, que consiste na atribuição de faculdades semelhantes a comportamentos semelhantes, em outras palavras, porque algumas ações dos animais não diferem sobremaneira das ações humanas, se é levado a atribuir-lhes um mesmo princípio, a alma ou a razão.
Mas, a despeito das aparências que podem induzir ao erro, Descartes entende que existe um meio seguro para distinguir o homem dos animais, ou, o que é equivalente no cartesianismo, o homem das máquinas. Os autômatos, diz ele no "Discurso do Método", "nunca poderiam usar palavras, nem outros sinais, compondo-os, como fazemos para declarar aos outros os nossos pensamentos; pois pode-se muito bem conceber que uma máquina seja feita de tal modo que profira palavras, e até que profira algumas a propósito das ações corporais que causem qualquer mudança em seus órgãos (...) mas não que elas as arranje diversamente, para responder ao sentido de tudo quanto se disser na sua presença, assim como podem fazer os homens mais embrutecidos".
Assim, o uso da linguagem é, no cartesianismo, o critério mesmo do pensamento ou da razão. Os animais não pensam ou usam a linguagem como o homem não em virtude de alguma deficiência ou inferioridade orgânica, mas precisamente porque são máquinas e, como tais, desprovidos de alma, substância que não pode ser produzida pela matéria, mas que requer um ato especial de criação.
O próprio corpo humano é, aos olhos de Descartes, uma máquina, ainda que perfeita, uma vez que concebida por Deus. Todavia, mais do que um corpo, o homem cartesiano é a união substancial do corpo e da alma. Por conseguinte, dos animais-máquina ao homem, existe no cartesianismo não apenas uma diferença da ordem de graus de complexidade mecânica, mas sobretudo uma diferença qualitativa. Em outras palavras, isto significa que, por mais engenhoso que fosse o artífice que se imaginasse, ele jamais poderia produzir um autômato capaz de pensamento, pois que a sua criatura faltaria justamente o essencial, a alma.
A doutrina dos animais-máquina atende, pois, a um duplo propósito no cartesianismo: de um lado, aos interesses da ciência moderna, de outro, às verdades da fé. Uma tese que atribuísse racionalidade aos animais poderia colocar em questão a imortalidade da alma. O mecanicismo, ao contrário, preserva a religião e, ao mesmo tempo, institui a separação entre o corpo e a alma em benefício da física moderna, desde então libertada das causas finais da tradição aristotélica.

Fábio Carvalho Hansem é graduado em ciência da computação pela USP e mestre em filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, onde defendeu a tese "A Inteligência Artificial e o Problema Mente-Corpo".

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