São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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Livro discute limites da inteligência artificial

DA REDAÇÃO

Dois renomados pensadores franceses, o neurobiólogo Jean-Pierre Changeux e o matemático Alain Connes, professores do Collège de France, em Paris, reuniram-se para discutir a natureza do pensamento matemático. O livro "Matéria e Pensamento", que a Editora da Unesp lança em abril, é o resultado desse diálogo.
O "Mais!" publica abaixo um trecho em que se discute a possibilidade de uma máquina se comportar como o cérebro humano.
*
Alain Connes - Examinemos em primeiro lugar o caso das máquinas que jogam xadrez. A intencionalidade é bem simples nesse caso: ganhar a partida. É uma coisa extremamente simples de definir. Definir uma função de avaliação que considera a que ponto se está próximo da intenção perseguida durante o jogo é relativamente fácil. Pode-se construir, portanto, uma máquina que utilize uma função de avaliação determinada por essa intencionalidade bem definida. No caso do cérebro, pelo contrário, a intencionalidade muda conforme os problemas que se apresentam. O cérebro deve, desse modo, criar ele mesmo a função de avaliação adequada a uma dada intencionalidade. De modo mais preciso, ele deve poder apreciar se essa função de avaliação se adapta à intencionalidade dada. Ele deve, por conseguinte, ignoro como, possuir uma função de avaliação de funções de avaliação! (...)
Uma função de avaliação pode ser identificada com um objetivo. Atribuir uma intencionalidade consiste, mais ou menos, em atribuir uma função de avaliação. Nem todas as funções de avaliação, é claro, são boas, pois algumas corresponderiam a intencionalidades contraditórias, ao passo que outras não seriam adaptadas a nenhuma intencionalidade. Mas podemos definir aproximadamente uma intencionalidade como uma função de avaliação coerente. Em uma dada situação, o cérebro deve poder elaborar ele mesmo esse tipo de função de avaliação. Deve ser capaz de criar ou, pelo menos, de escolher entre aquelas que já existem. E, para tanto, deve possuir ele próprio uma função de avaliação estabelecida de uma vez por todas, que lhe possibilite saber se a função de avaliação que ele cria é adaptada ao objetivo que ele persegue.
Jean-Pierre Changeux - Esse mecanismo supõe a memória.
Connes - Com efeito, a memória, as experiências adquiridas. O cérebro deve se apoiar em analogias para comparar a situação presente com as que ele conhecia antes.
Changeux - Existe, de um lado, uma memória genética. O organismo humano, tal como se apresenta hoje, resulta de múltiplas gerações de organismos que, antes, já viveram esse tipo de experiência. (...) De outro lado, o cérebro se abre para a realidade exterior e, principalmente, pode servir-se da memória (...) que se depositou durante a experiência pós-natal.
Connes - É no segundo nível que se coloca o problema fundamental. Qual pode ser o mecanismo que permite ao cérebro escolher uma função de avaliação apropriada a seu objetivo? Que critérios possibilitam a escolha? Enquanto não tivermos compreendido esse fenômeno, estaremos bem longe do segundo nível, como é o caso das máquinas que existem atualmente.
Changeux - Isso significa que elas não se encontram mesmo no terceiro nível.
Connes - Elas estão apenas no primeiro nível. Permitem unicamente efetuar adições ou multiplicações, mesmo que extremamente complicadas, ou jogar bem o xadrez. Mas a função de avaliação, assim como a intencionalidade, é sempre dada de antemão. Nenhuma máquina é hoje capaz de construir ela mesma a função de avaliação adaptada à intencionalidade que lhe é proposta.
Changeux - Os computadores atuais não são mesmo capazes de ter intenções.
Connes - Não, já que não se encontram em interação evolutiva com o mundo físico. Apesar de sua memória, não têm outro passado além daquele que nós lhes impomos. São não-evolutivos. É certo que a afetividade intervém nesse fenômeno. Quando nos atribuímos um objetivo, é para termos prazer, a menos que sejamos masoquistas!
Changeux - Essa capacidade de ter prazer é ela mesma determinada por nosso passado evolutivo. Se nós nos autodestruíssemos com prazer, é certo que não estaríamos aqui!
Connes - Sem dúvida. Mas penso que o mecanismo que permite considerar se a função de avaliação é apropriada ao objetivo supõe a afetividade. Esta, com efeito, é necessária para que possamos apreciar o que se passou. A adaptação da função de avaliação ao objetivo proposto só pode se medir pelo prazer ou desprazer por ela provocado. Imaginemos, por exemplo, um jogador de xadrez que, ainda que seja capaz de calcular como um computador, escolha uma má função de avaliação. É evidente que ele ficará extremamente frustrado quando constatar que perde todas as partidas que disputa. A escolha de uma má função de avaliação só lhe terá trazido desprazer. Este, porém, só surgirá no final das partidas, e não antes. (...)
Changeux - Não esqueçamos que esse sistema de avaliação interna (prazer/desprazer) é por sua vez predeterminado pelo passado evolutivo da espécie. Esses afetos já são determinados em sua reatividade aos sinais do mundo exterior e do mundo interior.
Connes - Em nossos dias, as máquinas supõem todas uma intencionalidade predeterminada. Em virtude disso, elas permanecem no primeiro nível.
Changeux - Mas, então, como construir máquinas que alcancem o segundo nível?
Connes - Posso apenas formular de maneira precisa o problema. Uma máquina desse tipo deveria estar em interação evolutiva com o mundo exterior. Deveria poder criar automaticamente uma função de avaliação correspondente a um objetivo dado do exterior. Deveria, portanto, ela mesma avaliar a estratégia por ela utilizada, e chegar a uma função de avaliação apta, caso dispusesse de uma memória e uma potência de cálculo suficientes para, por exemplo, jogar bem o xadrez.
Changeux - Mas isso pode ser implementado? Essa idéia já foi formulada. Por que essas máquinas não existem? O obstáculo é teórico ou prático?
Connes - Ignoro. Para mim, o único mecanismo que, no homem, permite aceder a esse segundo nível é justamente a afetividade.
Changeux - Podemos imaginar uma máquina cujo prazer é medido por uma grandeza que varia, com um teto, um nível médio, de modo que a máquina otimize...
Connes - Retomemos o caso do xadrez. Suponhamos que a máquina não disponha da função de avaliação que permite jogar bem xadrez. Ela dispõe de todos os movimentos possíveis, regras do jogo, e uma grande força de cálculo, mas não tem a vontade de ganhar. Como lhe inculcar isso? A cada lance, um bom computador avalia sua posição, assinala-a em uma escala e seleciona entre os lances possíveis aquele que exprime o maior valor da função de avaliação. A máquina que tentamos conceber não dispõe dessa função de avaliação. (...) Seria preciso fazer que, no fim do jogo, quando ela perde ou se encontra em má posição, ela sinta uma dor...
Changeux - Se ela sente uma dor, você já resolveu o problema.
Connes - Não ainda. Ela reage somente ao resultado final do jogo.
Changeux - Mas se você já inseriu na máquina o fato de que ela sofre quando perde, você tem a resposta.
Connes - Não, porque ela sofre apenas no fim da partida.
Changeux - Você já possui um elemento da resposta.
Connes - Um pequeno elemento. A avaliação ocorre somente no final. É tudo.

Tradução de Luiz Paulo Rouanet.

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