São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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O criador da consciência

JEAN-BAPTISTE MARONGIU
DO "LIBÉRATION"

Cabeça grande, corpo pequeno, tez meio cadavérica, meio terrosa, uma saúde debilitada: esse retrato de René Descartes é tão célebre quanto é incontornável a biografia em que podemos lê-lo. Publicada por Adrien Baillet em 1692 -meio século após a morte do filósofo, na época em que todo homem de respeito dizia-se cartesiano e venerava as idéias claras e distintas-, "A Vida de Descartes", de fato, preservou o mesmo brilho durante três séculos, à medida que a filosofia de seu protagonista era passo a passo exaltada ou rebaixada, isto é, submetia-se à prova do tempo.
Por ocasião do quarto centenário do nascimento do filósofo, Geneviève Rodis-Lewis ousou medir forças com o monumento de Baillet, em "Descartes" (ed. Calmann-Lévy), menos para demoli-lo do que para restaurá-lo. Essa professora honorária da Sorbonne, que publicou seu primeiro livro (de uma longa série) sobre Descartes em 1950, "O Inconsciente e o Cartesianismo", possui um conhecimento íntimo da obra cartesiana -o que lhe permite fazer malabarismos brilhantes com os paradoxos defrontados por todo biógrafo.
René Descartes, como sabemos, nasceu em La Haye, na província de Touraine, a 31 de março de 1596. Seu pai, membro do Parlamento de Rennes, não integrava a nobreza, ao contrário das alegações de Baillet. A família, abastada, reúne magistrados e médicos, mas apenas dá início ao processo de enobrecimento que, conforme o uso, terá fim somente após três gerações de encargos públicos.
Sua mãe morre ao dar à luz um outro filho (morto dali a três dias), quando o pequeno René acaba de completar um ano de idade. Não se sabe como o filósofo pôde vir a crer que sua mãe morrera ao dar-lhe vida, nem como nenhum dos seus desfez o mal-entendido. Seja como for, a criança é confiada a uma ama-de-leite, segundo os costumes. Por essa camponesa, guardará profunda afeição ao longo de sua existência, destinando-lhe uma pensão e, no leito de morte, encomendando-a a seus irmãos.
Tendo ingressado no colégio de La Flèche na Páscoa de 1607, Descartes conclui o curso em setembro de 1615. Aí se acreditava ter passado pouco mais sete anos de sua vida, porém seu ingresso não se deu aos oito anos de idade, ao contrário do afirma Baillet. De fato, foi preciso esperar que a criança recobrasse uma saúde melhor. Nesse colégio extremamente estimado, dirigido pelos jesuítas, o jovem Descartes conta com a proteção de um tio, o padre Charlet, que lhe ministra um regime dos mais extraordinários.
Em 1618, ele se alista no exército recrutado por Maurício de Nassau, futuro príncipe de Orange, para sitiar a cidade de Breda, nos Países Baixos, sob poder dos ocupantes espanhóis. É a primeira viagem de Descartes ao que se tornará seu segundo país, onde ele passará, em seguida, quase metade de sua vida e travará contato, em 1619, com Isaac Beeckman.
Ele abandona o ofício das armas para consagrar-se com exclusividade à busca da verdade -como um filósofo da antiguidade. É na Alemanha, e não na Holanda, na noite do dia 10 para o dia 11 de novembro do mesmo ano, que se deve situar o célebre episódio do "poêle", aquele quarto bem aquecido no qual um Descartes febril e como alucinado terá a "revelação" dos fundamentos de sua filosofia razoável. Mais precisamente em Neuburg, no Palatinado, onde, depois de abandonar o ofício das armas, ele dá início a uma série de viagens destinadas a aperfeiçoar sua formação.
Em 29 de abril de 1629, Descartes inscreve-se na Universidade de Franeker. Permanecerá na Holanda até 1641 e aí redigirá a totalidade de suas obras. Muito se cogitou sobre as razões desse exílio. Alguns imputaram-no à contra-reforma católica e aos temores dos intelectuais após a condenação de Galileu pelo Santo Ofício, em 1633. Geneviève Rodis-Lewis não vê motivo para opor-se às razões alegadas pelo próprio Descartes: seu anseio por tranquilidade.
Fustigado pelos teólogos (protestantes) da Holanda, visto com desconfiança pelos teólogos (católicos) da França, Descartes não deixou de fazer concessões à forma, mas jamais cedeu quanto ao fundo, cultivando um vasto leque de amizades que acabará por protegê-lo de ambos os lados da fronteira.
Já célebre, ele ocupa seu tempo a viajar pela Europa, ao sabor de suas pesquisas (matemática, astronomia, anatomia, física, medicina, nada escapa a sua curiosidade insaciável), e a visitar seus amigos. Possui tempo de sobra: não consagra mais do que algumas semanas (sempre no inverno) a suas especulações; quase não lê, pois está certo de que não encontrará nos livros a nova filosofia que busca ardorosamente.
Em 1635 nasce Francine, fruto de sua união com Hélène Jans, a criada de um de seus amigos. A criança morre de escarlatina aos cinco anos, quando seu pai tomava providências para enviá-la à França, onde moraria com uma tia, para assegurar-lhe uma educação conveniente. O próprio Descartes, de volta a suas terras para resolver problemas de herança após a morte de seu pai, logo retorna à Holanda, onde permanecerá de 1642 até setembro de 1649, data de sua partida definitiva para a Suécia.
Convidado pela rainha Cristina, Descartes recusara numa primeira vez seguir viagem com o almirante Fleming, que viera conduzi-lo a Estocolmo com um navio da frota. Quando se resigna a partir, já é inverno, estação durante a qual sempre formulara suas idéias, mas nunca viajara. Ao chegar, é recepcionado pela rainha e recebe "com respeito", escreve Geneviève Rodis-Lewis, "a ordem de se encontrar em sua biblioteca todas as manhãs, às cinco horas", sem dizer à monarca "que ele se recolhia tarde, dormia cerca de dez horas e, depois disso, ainda permanecia de bom grado na cama".
Brilhantíssima, ébria de metafísica, obstinada pela moral, apaixonada pela dança e pelas caçadas, Cristina não conta mais do que 23 anos na época. Um tanto masculina, ela acabara de se fazer coroar "rei da Suécia". Caprichosa, mulher em que fulguravam a cabeça e o coração, a rainha não vê obstáculos à sua frente.
Uma vez, chegou a encomendar ao filósofo versos "franceses" para um baile. Ele os escreve, mas consegue esquivar-se da festa. De compleição já frágil, Descartes sofre terrivelmente com o frio nesse país nórdico. O resultado é lógico: na primeira jornada de fevereiro, ao regressar do palácio, ele é acometido por calafrios. No dia 11 do mesmo mês, no ano de 1650, às quatro horas da manhã, após receber o viático, René Descartes morre aos 54 anos de idade. De pneumonia.

Tradução de José Marcos Macedo.

Onde encomendar "Descartes", de Geneviève Rodis-Lewis (ed. Calmann-Lévy, 372 págs., 150 francos) pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, fundos, tel. 011/231-4555, São Paulo).

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