São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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As paixões secretas

JEAN-BAPTISTE MARONGIU
DO "LIBÉRATION"

Sem esquecer Husserl ou Cassirer, os estudos cartesianos foram marcados nesse século, na França, por algumas figuras essenciais: Étienne Gilson (1925), Henri Gouhier (1937), Ferdinand Alquié (1950), Martial Guéroult (1953) e, mais próximo de nós, Jean-Luc Marion (1975 e 1981). "L'Homme des Passions" (O Homem das Paixões), de Denis Kambouchner, parece pertencer a uma linhagem de obras filosóficas que, de tempos em tempos, vêm renovar a exegese de certa obra e despertar novo interesse por seu autor.
Descartes, como sabemos, relutava em tratar de certos assuntos. Por prudência, preferia deixá-los a cargo dos teólogos e dos moralistas. Sabemos também que ele gostava de se abrir às mulheres. E foi justamente por insistência de sua amiga, a princesa Elisabeth da Boêmia, depressiva e espiritual, e à guisa de remédio contra os humores negros da melancolia dos quais ela estava sobrecarregada, que Descartes resolveu, como um "médico", falar da influência das paixões sobre a alma.
Enigma tanto mais fundamental e de difícil resolução, na medida que Descartes situa a união -ou melhor, a interação- entre a alma e o corpo num único ponto, a glândula pineal, instituída como órgão geral de sua comunicação.
Essa "conjunção ou composição de uma substância extensa e de uma substância pensante" está tão fortemente entrelaçada que ela é para nós, em última instância, indecomponível. Mas somente em última instância, pois, de outro modo, a aplicação do "método" em toda a sua amplitude seria impossível. Antes de ser normativa ou moral, a explicação será então fisiológica e psicológica, sendo necessário evidenciar a natureza, a condição e a definição própria dos fenômenos passionais.
Descartes avança mascarado, com circunspecção. Como de costume. Não que ele se prive de enunciar ou de minorar seu propósito. Ele é bem mais corajoso do que admitimos geralmente. Mas também muito mais diabólico! Ele reduz a totalidade de seu pensamento a mil fragmentos de um quebra-cabeça cujo traçado devemos reconstituir por meio de leis de composição formuladas, elas próprias, em forma de charada. Isso explica igualmente por que a metafísica, como tal, acha-se excluída do "Tratado".
As paixões da alma a consideram como adquirida, e, longe de representar uma espécie de produção periférica, esta obra vem justamente coroá-la e fornecer-lhe a chave da leitura. Tal seria a condição mantida em segredo pela teoria cartesiana: "Não apenas que a alma, sem o amparo do corpo, conservaria uma forma de debilidade; além disso, o pensamento, e em especial vontade -ou pelo menos um certo regime de pensamento, um certo gênero de vontade-, são funções do corpo antes de o serem da alma".
O sujeito da moral cartesiana, portanto, não é nem a alma nem o corpo, mas aquilo que Descartes denomina o "composto": também os processos que assinalam esse sistema não suportarão mais uma distinção de fato, mas apenas uma distinção de princípio, cuja fecundidade teórica e utilidade moral são por ele demonstradas.
A última verdade legada por Descartes é que as paixões são boas. "Pois", escreve Kambouchner, "é ainda um bem e uma perfeição poder, sob seu efeito, experimentar toda a força e a independência de nossa alma; é um bem e uma perfeição, enfim, ser comovido pelas coisas exteriores, pois se não pudéssemos sê-lo, seria como se fôssemos privados do sentido do prazer e da dor: nossa vida, nossa existência no mundo, a condição encarnada de nossa alma, perderia todo sentido -ou seja, seu caráter desejável, mas sobretudo sua plena e inimitável realidade".
Kambouchner, em sua obra, nos faz admirar com vagar esta frase de Descartes, em que se lê que as paixões são "tão úteis a essa vida que nossa alma não teria por que querer permanecer unida a seu corpo nem sequer um instante, se ela não as pudesse sentir".

Onde encomendar: ""L'Homme des Passions" (Ed. Albin Michel, 2 vols., 502 págs. cada, 145 francos) pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga 275, fundos, São Paulo, tel. 011/231-4555).

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