São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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Físico diz que emoções poderão ser 'copiadas'

JOSÉ LUIS SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tudo o que o homem é, pensa, sente e deseja não é mais que efeito das leis que regem as partículas físicas de seu cérebro. O homem é dominado por seu cérebro. Essa é a síntese do pensamento do físico, matemático e filósofo americano Douglas Hofstadter, 50, do Centro Para Pesquisas Sobre Conceitos e Cognição da Universidade de Indiana (EUA).
"O cérebro é o dispositivo físico responsável pelo pensamento", afirma. "E, uma vez que as leis da física não são místicas, meu próprio cérebro é, no fundo, determinado pelas leis que governam as partículas". Materialismo mais extremado não há, nem talvez possa haver. Se há espírito, ele é idêntico ao cérebro.
Daí à idéia de se reproduzir de modo mecânico a inteligência humana é só um passo -ainda que previsto para se realizar daqui a muito tempo, de modo gradual. Hofstadter não hesita em dizer que, se um dia um robô humanóide vier a existir, os sentimentos e as emoções nasceriam, de modo automático, como um efeito de sua complexidade.
Na imagem de Hofstadter, os afetos -aos quais o homem sempre se aferrou como prova de sua singularidade entre os seres animados ou inanimados- surgem no momento em que uma criatura qualquer passa a saber que existe, a ter consciência de si mesma entre os outros objetos e seres do mundo.
Hofstadter nasceu em Nova York, em 1947, e foi criado na Califórnia. Segundo diz, o nascimento de uma irmã mais nova com uma lesão cerebral grave e irreversível foi decisivo em sua opção pela investigação do cérebro e da mente.
Graduou-se em matemática na Universidade Stanford e doutorou-se em física na Universidade de Oregon. Depois, seguiu para a Universidade de Oxford (Reino Unido) para trabalhar com o filósofo da mente inglês Gilbert Ryle.
Há 20 anos, cria modelos teóricos do cérebro humano, a partir do que se sabe sobre o funcionamento dos computadores. Seu último livro, "Fluid Concepts and Creative Analogies" (Conceitos Fluidos e Analogias Criativas), descreve os modelos criados nestes anos.
Escreveu, entre outros, dois livros que se tornaram best-sellers nos EUA, "Gõdel, Escher, Bach" (a sair este ano pela editora da Universidade de Brasília), e "The Mind's I", livro de contos de ficção científica escrito em parceria com o filósofo Daniel Dennett. Hofstadter falou a Folha, por correio eletrônico.

*
Folha - O sr. acredita que a mente humana pode ser replicada por completo de modo mecânico?
Douglas Hofstadter - Sempre percebi que o cérebro é o dispositivo físico responsável pelo pensamento. E, uma vez que as leis da física não são místicas, meu próprio cérebro é, no fundo, determinado pelas leis ou regras que governam as partículas. Isso significa que, em um sentido teórico, meu cérebro -e também minha mente, minha alma e minha consciência- é um efeito de leis regulares. O que quer dizer que ele poderia ser, ao menos em princípio, modelado por um computador de suficiente complexidade. Mas penso que temos um caminho bastante longo a percorrer antes que nossos modelos computacionais estejam apenas remotamente perto, em complexidade e sutileza, de nossos cérebros.
Folha - O que é próprio da mente humana e ainda não foi alcançado pelos modelos computacionais?
Hofstadter - Assinalar padrões ocultos, extrair essências profundas, formar altas abstrações, fazer analogias sutis -isso para mim define o nó da mente humana. E é isso aquilo sobre o que nós, em ciência cognitiva, deveríamos estar focalizando nossos esforços.
Folha - A dor pode ser replicada?
Hofstadter - Acredito que, quando os sistemas artificiais forem complexos o suficiente para passear pelo mundo por si sós (como fazem os animais), dirigidos por seus próprios objetivos, então, como nós, eles irão ter a experiência de frustração e satisfação, dor e prazer, sofrimento e alegria.
As emoções irão aparecer de modo automático, como uma função de suas complexas auto-representações. Quando os sistemas de inteligência artificial (IA) tornarem-se ricos e sofisticados o suficiente, então a auto-referência inevitavelmente entrará em cena, como pela primeira vez pensou (o matemático e lógico tcheco naturalizado americano) Kurt Gõdel. Neste ponto, em minha visão, a consciência começará a aparecer.
Folha - Como o sr. vê as críticas feitas à IA pelo filósofo John Searle, segundo o qual só organismos biológicos podem pensar?
Hofstadter - Em sua insistência em que somente cérebros orgânicos têm a "coisa certa" com a qual pensar, Searle é tão tolo como o grande pioneiro em IA Herbert Simon, quando ele afirma que o Deep Blue estava pensando enquanto jogava contra Kasparov. Ambos os pontos de vista são, para mim, absurdos, embora opostos.
As pessoas querem acreditar ou que computadores já pensam, ou que nunca irão pensar (ou ser conscientes, sentir emoções, etc.). Mas essas dicotomias simplistas de sim/não são apenas pensamentos carregados de desejo.
Folha - Pode-se prever quando as máquinas serão inteligentes?
Hofstadter - Creio que os modelos da mente irão, aos poucos, desenvolver um tipo de inteligência, de autonomia e de auto-referência genuínas. Talvez isso se dê tão devagar, que não teremos consciência de que em algum momento eles ultrapassaram um limiar mágico. A partir de então, poderemos chamá-los conscientes.
Folha - Como o sr. vê a relação entre a IA e o cartesianismo, que considera a alma como uma substância distinta do corpo?
Hofstadter - Não é uma idéia muito boa. A IA vê a mente como um efeito muito complexo de leis físicas, não como algo externo ao corpo. O cérebro é parte do corpo. Ele é composto por um fantástico número de "partes móveis" -os neurônios e suas partes menores. As leis que governam essas pequenas entidades determinam de modo indireto tudo o que somos, sentimos e pensamos.
Sou uma "vítima de meu cérebro". Quer dizer, sou determinado por uma estrutura física sobre a qual eu mesmo não tenho controle. Nesse sentido, sou "dominado" por meu cérebro, mais do que o inverso (eu poderia ver minhas idéias como algo que "dominasse" os elétrons e as outras partículas em meu cérebro).
Folha - Como a IA irá modificar a vida cotidiana dos homens?
Hofstadter - É difícil dizer. De modo gradual, as idéias da IA sempre terminam em produtos. Suponho que, devagar, encontraremos nossos dispositivos tornando-se cada vez mais parecidos com agentes autônomos que tomam suas próprias "mini" decisões -exceto que o prefixo "mini" irá tornar-se cada vez menos válido. Até que um dia, surpresos, nós nos encontraremos rodeados por "seres" que nós mesmos criamos. É como a garota Gigi, que, enquanto seu amigo mais velho Gaston não estava olhando, tornou-se, da noite para o dia, uma linda mulher.

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