São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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Sem saber, Frei contesta as teses de FHC

CLÓVIS ROSSI
DO ENVIADO ESPECIAL

Sem saber, o presidente do Chile, Eduardo Frei, desembarca hoje no Brasil com forte crítica à tese de seu colega brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, que se diz disposto a "refundar a República".
Em entrevista exclusiva concedida na segunda-feira, Frei afirmou: "O pior que alguém pode fazer -e esse tem sido um dos grandes males da América Latina- é crer que cada governo é fundador. Crer que cada governo faz de novo o país".
Frei contestou também a idéia que FHC defendeu, em entrevista na recente passagem pelos EUA, segundo a qual o progresso econômico chileno teve suas bases lançadas pelo ditador Augusto Pinochet, que governou entre 1973 e 1990.
"O governo militar teve, nos seus 17 anos, todo tipo de altos e baixos. Na crise de 1982, por exemplo, o Chile perdeu em um ano 17% de seu PIB, e as taxas de desemprego chegaram a 30%", disse.
Eduardo Frei Ruiz-Tagle, engenheiro civil de 53 anos, milita na Democracia Cristã desde os 16 anos, mas só participou de eleições bem mais tarde, ao eleger-se senador em 1989, eleição que marcou o retorno do país à democracia.
Quatro anos depois, elegeu-se presidente já no primeiro turno, obtendo 57,99% dos votos.
Frei recebeu a Folha no final da tarde de segunda-feira, em seu gabinete no Palácio de la Moneda, a sede governamental chilena, semidestruída no golpe de 1973.
Leia a seguir os trechos principais da entrevista.

*
Folha - O Chile cresce há 12 anos, o desemprego e a inflação caem. Qual é a receita do milagre?
Eduardo Frei - Não há milagre. Trabalhar, trabalhar e trabalhar, não há outro milagre. Já temos taxas de poupança de 28% do PIB, taxas que nunca havíamos tido.
Temos taxas de investimento de quase 30% do PIB, e, o que é mais importante, o Estado contribuiu para essas taxas. Tivemos superávit (fiscal) o ano passado porque temos as contas em ordem.
Para isso, é preciso estabilidade, regras de jogo claras. Temos fortes correntes de investimento estrangeiro porque esse capital tem tratamento similar ao chileno.
Folha - Muita gente no Brasil diz que as bases para a explosão econômica do Chile foram lançadas na ditadura. Como o sr. avalia?
Frei - Creio que o pior que alguém pode fazer -e esse tem sido um dos grandes males da América Latina- é crer que cada governo é fundador. Crer que cada governo que chega faz de novo o país.
E os países não se constroem com os governos, mas com a história.
Há muitos processos econômicos, sociais e políticos do Chile que vêm, por exemplo, da década de 60. Há processos que se implementaram no governo de meu pai (Eduardo Frei Montalva, presidente entre 64 e 70). São processos, como o da educação, por exemplo, que levam de 20 a 30 anos.
Agora, é evidente que também no governo militar se fizeram transformações profundas, porque, quando se está numa ditadura, as leis são muito mais fáceis de fazer.
Ademais, o governo militar teve, nos seus 17 anos, todo tipo de altos e baixos. Na crise de 1982, por exemplo, o Chile perdeu, em um ano, 17% de seu PIB, e as taxas de desemprego chegaram a 30%. Os governos devem ser analisados em seu contexto e em seus prazos.
Folha - Há críticas, na própria coalizão governante, sobre a suposta lentidão das suas políticas sociais. Dizem que não estão produzindo os resultados esperados, ainda mais que, no discurso de posse, o sr. pôs o combate à pobreza como primeira prioridade...
Frei - Algumas críticas da oposição, nestes dias, dizem até que o país não está avançando. Não reconhecem as cifras econômicas do Chile, que, em 1995, foram talvez as melhores de sua história.
Um país não resolve seu problema de pobreza do dia para a noite. Em 1990, tínhamos quase 40% da população (5 milhões) na pobreza. Isso se reduziu fortemente, e hoje a taxa é de 22% ou 25%.
E se você visitar o país, verá como avançam as obras sociais. Há, logicamente, setores, os chamados de "pobreza dura" (indigência), aos quais é difícil chegar.
Para esses, o que se requer é um esforço global. Por isso, criamos o Conselho Nacional de Superação da Pobreza, em que estão todos os setores do país, porque essa é uma tarefa do país, não do governo.
A batalha mais forte para terminar com a miséria em nosso país é a luta contra a inflação. Ter inflação de um dígito (anual) significa estabilidade, significa aumentar o poder aquisitivo dos trabalhadores.
Folha - Seria possível dizer que a ditadura fez o trabalho sujo, reformas claramente impopulares, como a da Previdência, que causa problemas na França, no Brasil...
Frei - Em muitos foros internacionais, fizeram-me essa pergunta. Sempre digo que é muito diferente uma reforma previdenciária num sistema democrático, em que tem de ser votada pelo Parlamento, e numa ditadura. Neste, edita-se um decreto, como no Chile, e muda-se todo o sistema previdenciário.
A mudança significou que, a partir de um dado dia, passou-se a uma capitalização individual.
E todas as pessoas que já tinham 20 ou 30 anos de trabalho e contribuição ao Estado não conseguiriam criar o seu fundo. O custo disso vai ser de US$ 2 bilhões ou US$ 3 bilhões, por uns 10 anos.

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