São Paulo, terça-feira, 26 de março de 1996
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Pobreza faz caras e bocas para farsa do mundo

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A imagem de um homem estrebuchando no asfalto da via Dutra, estrada que liga São Paulo ao Rio, encheu a tela da televisão na noite de sábado último. Negro africano, de Gana, vinha de São Paulo com destino ao aeroporto internacional do Rio, de onde seguiria para Moscou na rota da droga.
Trazia no estômago 56 cápsulas de cocaína e estrebuchava em overdose, vítima da única cápsula que se rompera dentro do organismo dele. Debatia-se no chão, implorando, em língua africana, para não morrer. Teve convulsões, morreu minutos depois. Cena inacreditável, tão inacreditável que tinha algo do grotesco, do grosseiro e absurdo das farsas.
A cara de espanto do homem, a boca aberta, os olhos esbugalhados, a língua incompreensível -tudo se somava para formar o espetáculo quase burlesco. Ainda mais porque a reportagem mostrava a entrada desse novo tipo de escravo escuro no Brasil -estavam com ele dois outros africanos, cada um tendo ingerido mais de cem cápsulas de cocaína.
Pois esse escravo novo, esse traficante das especiarias modernas -o homem-droga, homem-cápsula, homem-seringa do terceiro mundo- passa pela imigração dos aeroportos vestido em terno e gravata, fingindo-se de executivo.
Enquanto isso, realizava-se em Recife, semana passada, o Encontro Internacional sobre Pobreza Urbana, evento preparatório para a reunião de cúpula das cidades, na Turquia, em junho. A ONU veio ao Brasil em busca de know-how para lidar com favelas.
E enquanto a ONU se preparava para "colocar os pobres urbanos no mapa", sugerindo que a classe média do mundo todo repense sua relação com os pobres, morriam em Recife mais de 20 pessoas contaminadas em processo de hemodiálise numa clínica de Caruaru.
Encontraram a morte na máquina que deveria salvá-las, talvez na água que circulava pelo maquinário obsoleto, talvez no próprio maquinário. Entraram vivos, sairiam intoxicados, meio mortos. De repente estavam lá, em fila, esperando para morrer, as expressões moldadas em barro, como os bonecos de Vitalino.
Vitalino foi o grande mestre das pequenas esculturas em barro de Caruaru. Imagino o que ele não esculpiria inspirado na parafernália das máquinas de hemodiálise da clínica de Caruaru. Homens e mulheres estrebuchando, contorcendo-se em esgares, ligados aos fios, às seringas e roldanas daquelas verdadeiras cadeiras elétricas da hemodiálise.
Depois mestre Vitalino venderia os bonecos para os turistas na antes pitoresca feira de Caruaru. Os turistas franceses, quem sabe. Os mesmos turistas franceses que já podem vir ao Rio de Janeiro fazer "turismo exótico" pelas favelas cariocas.
Sobem o morro de jipe, em excursões sociológicas pelo "Brasil real", com direito a guia e curso rápido de "introdução à miséria nacional". Tudo só parece ter sentido se tomado como farsa ou tragicomédia. A inversão de valores é tão flagrante a ponto de conduzir à perpetuação da favela -transformada que ela é em atração turística e, portanto, em lucro e dividendos-, à cristalização da irremediável pobreza do terceiro mundo.

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