São Paulo, terça-feira, 26 de março de 1996
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"Quatrilho" acaba de ganhar o Oscar! Ou não?

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"O Oscar vai para..." -estou escrevendo do passado. Você, leitor, já sabe se ganhamos o Oscar ou não. Eu não sei ainda se o Fabio Barreto subiu no pódio e disse; "Viva o cinema brasileiro!', como ele planejou. E eu me lembro de Fabio com sete anos de idade. Eu montava meu primeiro curta, "O Circo", na casa de Luís Carlos Barreto, ali na r. 19 de Fevereiro, em Botafogo, para onde foi a mesa de montagem que a Unesco doou ao Brasil, graças à ajuda de Paulo Carneiro, que era nosso embaixador e pai do pintor e cineasta Mario Carneiro. Uma Moviola Steenback, a mais moderna. Oh tempos simples.. Um equipamento novo mudava uma cultura... Por esta moviola, que ficou abrigada no quintal dos Barretos, passaram muitos filmes clássicos: "Vidas Secas", "Os Fuzis", "Ganga Zumba", tantos... até meus humildes primeiros filmes. Fabio e Bruno, que tinham sete e nove anos, ficavam me sacaneando na sala de montagem. E eu gritava para a cozinha: "Oh, Lucy, vem tirar esses meninos daqui! Estão me enchendo o saco!" E a babá Lurdes ia puxando o Fabio para fora, que esperneava e queria ver os palhaços do circo na telinha. E eu só saía da moviola para ir, morto de fome, atacar a geladeira da Lucy Barreto, tomar o leite do Fabio e o Danoninho do Bruno.
Quem não viveu o sonho do Cinema Novo não sabe o que foi a delícia de viver esta fase do Brasil, antes da Revolução, citando Tayllerand via Bertolucci.
Havia uma coisa mágica no ar, nestes anos anteriores ao golpe de 64. Como explicar isso, sem nostalgia boba, aos jovens cínicos de hoje? Barretão tinha um inacreditável robe de chambre vermelho bordado com dragões de ouro e, em volta dele, os cineastas jovens rodavam feito passarinhos.
Barretão, que tinha viajado pelo "O Cruzeiro", cria de Chatô, era nosso contato com o mundo adulto. Tinha fotografado a Marilyn Monroe, que lhe deu bola e ele quase comeu. Como descrever o sentimento de "importância" que nos atravessava? Claro, ilusões de juventude, dirão alguns... Mas, havia no Cinema Novo que se fundava um tom de coisa fundamental rolando que me fez esquecer a Faculdade de Direito onde me formei colando, me fez esquecer qualquer sonho de riqueza e seriedade (meus colegas começavam a usar gravata cedo e iam trabalhar nos escritórios famosos) e me jogou na UNE, onde se fez um dos primeiros filmes do Cinema Novo ("5 Vezes Favela"). Sentíamo-nos o braço artístico de Che Guevara, lindo, de charuto na boca. Como era "chic" fugir do "sistema"... E era com orgulho que eu, mal vestido, duro, encontrava na av. Rio Branco os colegas engravatados que me olhavam com desconfiança e uma certa inveja e perguntavam, de olho gordo: "E aí, você está comendo muita atriz? Aquela da televisão é boa para cacete... Comeu Fulana?" Eu negava, corando de modéstia: "Eu não como ninguém..." Mas, deixava uma ponta de dúvida no ar, para me vingar do careta que partia no carrão do ano.
E esta magia não se resumia a "orgulho de comunas". Éramos parte de uma revolução dentro da revolução. O mundo mudava visualmente, graficamente, ritmicamente. Godard tinha acabado com a narrativa linear, os Beatles estreavam, a revolução gráfica se fazia nas revistas e nas telas queimadas de contraluz, e nós éramos o máximo, pobres e com camisa de marinheiro, "mudando" o mundo. Toda geração se acha o sal da terra. Claro... Mas havia um cruzamento no tempo ali, que descontadas as ilusões, era "batata". O que era? Os anos 60 davam a sensação de que o mundo, depois de errar durante séculos, estaria pronto para acertar. Éramos os primeiros filhos de uma nova via para além do stalinismo e do capitalismo. Daí nossa arrogância alegre, a imantação que víamos em cada gesto nosso, daí a aura de magia que havia em Glauber Rocha me contando que em "Deus e Diabo" haveria valsas de Strauss nos puteiros do São Francisco.
Gustavo Dahl gritava: "Não queremos saber de cinema; queremos ouvir a voz do Homem!." "Cinema não é questão de idade, é questão de verdade!", gritava outro. E Joaquim Pedro fundava o "cinema-verdade", filmando Manuel Bandeira em travelling no centro da cidade, enquanto Norma Benguell, a mulher mais boa do mundo, rolava na areia de "Os Cafajestes", como nossa primeira nudez profunda.
Luíza Maranhão, princesa negra, furava a luz da Bahia em "Barravento" e os produtores passionais como Jarbas Barboza e os Farias e Gugu Mendes voltavam do sertão como bandeirantes "virtuais", que conquistavam o Brasil para o reino da imagem. Luís Carlos Barreto arrancava as telhas das casas do sertão e estourava a luz de "Vidas Secas", não só por desejo estético, mas porque não havia grana para comprar refletores.
Nossa estética era nossa fome. Da precariedade fazíamos poética. Aparecia o rosto do país nas teleobjetivas, nos supercloses dos rostos da arquibancada em "Garrincha", as câmeras saíam dos tripés e voavam na mão de Ricardo Aronovitch e depois nos baços alados de Dib Lutfi, o maior cameraman do mundo, e a realidade deixava de ser olhada de um ponto de vista e virava um olho flutuante nos multiplicando.
Paulo César Sarraceni, lindo, dançava como mestre-sala e Gal Costa cantava "a capela" em "Terra em Transe" pela primeira vez, e as mulheres míticas rodavam em volta, lindas, como hoje não há: Leila Diniz, Marília Branco, Regina Rosemburgo destruindo o coração de Glauber e Cacá, Danuza, Yoná, Darlene Glória. E depois vieram as patrulhas todas, as ideológicas de direita e de esquerda, como dicionarizou Cacá, depois veio a recessão mundial, depois veio a Embrafilme e sua decadência, depois veio Collor e seu ódio ao cinema e quase nos destruíram.
Mas, a idéia de cinema brasileiro persistiu. Por quê? De onde vem esta funda vontade de viver de qualquer modo, mesmo no absurdo? Será que a luz brasileira é que gera este desejo de se ver, será que a paisagem precisa de olhos para existir e nos usa como "cavalos" deste desejo? Por que esta obsessão? Naquela época, quando víamos uns aos outros no botequim do Laboratório Líder, ali na rua Álvaro Ramos, tínhamos a sensação de estar fazendo alguma coisa essencial, histórica. E não era só a juventude que nos iludia. Havia alguma coisa que se estendeu pelos anos afora, desde a geladeira branca que eu atacava tomando o leite do Fabio até ontem, com ele na noite do Oscar. Escrevo sem saber se Fabio Barreto terá subido ao palco ou não. Mas, mesmo que a besta do Tornatore tenha ganho, ou o bom cineasta Bo Wilderberg, mesmo assim, vejo Fabio Barreto em Hollywood e através dele lembro de minha vida nos últimos 30 anos. E penso: que loucura...

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