São Paulo, terça-feira, 26 de março de 1996
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Automobilismo e espetáculo

ANDRÉ LARA RESENDE

Há pouco tivemos a Indy no Rio e esta semana teremos a Fórmula 1 em São Paulo. À velha rivalidade entre as cidades agora se sobrepõe -estimulada pela competição entre redes de televisão- a rivalidade entre as duas categorias mais divulgadas do automobilismo. Já perdi a conta de quantas vezes me perguntaram qual das duas eu prefiro.
É que gosto de automobilismo. E há muito tempo. Acho que é uma doença que se adquire cedo na vida. Talvez já se nasça com ela. Mas para tristeza de alguns pais, frustrados chefes de equipe nos cartódromos, não parece ser hereditária. Já o meu pai, que se dava por satisfeito de saber identificar o seu próprio Fusca, nunca deixou de se queixar -às vezes com uma ponta de irritação- da minha obsessão pelo tema.
Os inoculados pelo vírus se reconhecem imediatamente. Formam uma sólida e fechada confraria. Os amigos, os convidados, todos os que são esquecidos quando dois ou mais membros se encontram, nunca deixam de exprimir seu espanto e indignação com o dialeto impenetrável da confraria.
Gatos escaldados, procuramos nos defender conversando em voz baixa, num canto, com o ar sério dos homens de negócios. Ao primeiro sinal de que um estranho se aproxima, a conversa é interrompida com indisfarçável mau humor. Pior do que os que protestam só os falsos interessados.
A ignorância dos não-iniciados só é superada pela chatice dos recém-convertidos -filhos da era do marketing e da televisão.
Nunca ouviram o ronco dos motores, nunca sentiram o cheiro do óleo e da gasolina, não têm a menor idéia do que está além das cores dos patrocinadores dos carros de corrida modernos e nos abordam sobre o tema com a alegria espalhafatosa dos novos-ricos.
Tradição é fundamental. Um puro se reconhece pelos conhecimentos da história. Não é preciso ter idade para ter vivido a época áurea do automobilismo romântico: as décadas de 50 e 60.
Mas é preciso saber apreciar os seis Webers duplos sobre o cabeçote vermelho, a beleza pré-túnel-de-vento e o rugido profundo do 12 cilindros de uma Testarossa. É preciso conhecer a sofisticada delicadeza das Lotus 25 e 33 com as quais Jim Clark foi campeão.
A Fórmula 1 moderna fez enormes concessões ao marketing, é verdade. Os mais belos circuitos, a começar por Interlagos, foram desfigurados para se adaptarem às exigências do televisionamento.
Os carros, desde que Colin Chapman -inovador para o bem e para o mal- trocou o belo verde escuro pelas cores do primeiro cigarro patrocinador, perderam parte da elegância. Mas a categoria continua a aliar a tecnologia de ponta à tradição. É o que basta para atrair os melhores.
A Indy, o que dizer da Indy? Os carros pesados, os circuitos ovais, os tempos classificatórios em milhas por horas, e, sobretudo, a bandeira amarela.
A bandeira amarela que interrompe o espetáculo pelas razões mais fúteis para que os carros se reagrupem em fila indiana atrás do Pace-Car.
O ritmo é de videoclipe: cortes, muitos cortes. Mais de alguns minutos de corrida, quem tem paciência? É melhor embaralhar tudo e recomeçar. Espetáculo moderno, sem dúvida, mas automobilismo? Não sei não.

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