São Paulo, quarta-feira, 27 de março de 1996
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Temos identidade nacional "para inglês ver"

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma coisa é torcer pelo Brasil na Copa do Mundo: você assiste o jogo inteiro, percebe se a Seleção está jogando bem ou mal, e de certo modo, mesmo sem querer, se prepara para o resultado. Outra coisa foi a expectativa em torno de "O Quatrilho". Torcer, nesse caso, era só imaginar a vitória, sem poder acompanhar a decisão propriamente dita.
Depois de um mês e tanto de preparação, tudo durou menos de um segundo. O Oscar foi para outro filme -pronto, acabou. A até então simpática Whoopi Goldberg voltou ao palco, e parecia uma bruxa malvada de Walt Disney, com sua capa preta e o sorriso de quem não tem a menor piedade pelos vencidos.
Criou-se uma sensação de vazio, como se tivesse acabado a luz, e demorou um pouco para que Marília Gabriela e Rubens Ewald Filho, os ótimos apresentadores do "nosso" show, pegassem um fósforo, achassem uma vela e acendessem um raciocínio de consolação.
Raciocínio certíssimo, aliás. Claro que já é uma vitória que o filme tenha sido indicado. Rubens Ewald Filho, que esbanjava conhecimento, experiência e equilíbrio na transmissão, disse uma coisa de muito bom senso: afinal, essa indicação para o cinema brasileiro chegou até que bastante cedo. Há não mais que três anos, parecia que Collor havia destruído tudo. A recente explosão de filmes nacionais foi "reconhecida" antes do que se esperava.
Sem dúvida, há um caminho promissor pela frente, e investir em cinema brasileiro começa a parecer um bom negócio. Mas na madrugada de terça-feira os prognósticos favoráveis a médio prazo se chocavam com a frustração instantânea.
Os comerciais alusivos a "O Quatrilho" -homenagem da Parmalat à imigração italiana, por exemplo- pareciam, depois do resultado, envelhecidos e fora de propósito. O clima de comemoração persistia nos anúncios, mas a página já havia sido virada; o episódio se esgotara numa rapidez de filme de James Bond.
Recebi muitas cartas irritadas com um artigo em que eu fizera restrições a "O Quatrilho". O engraçado é que eu até tinha dito que o filme era bom -só que convencional demais, e ironicamente muito afastado da realidade brasileira.
É que eu também estava afastado da realidade de torcida total que costuma surgir nessas horas. Temos uma intensa necessidade de reconhecimento no exterior.
Nada nos fere tanto quanto um estrangeiro pensando que a capital do Brasil é Buenos Aires. Ou que o país é só futebol e Carnaval.
Não somos exageradamente nacionalistas. Os Estados Unidos são um país bem mais nacionalista que o Brasil. Lá, coisas como hasteamento da bandeira e culto aos heróis da pátria são muito mais fortes do que aqui.
Somos tão ávidos de absorver a cultura americana, que nossa vontade de reconhecimento é quase como uma contrapartida a baixo preço que pedimos em troca.
Às vezes parece que até mesmo a nossa identidade nacional tem de ser construída a partir dos olhos do estrangeiro, e não por nós mesmos.
Esse Brasil do futebol e do Carnaval, exótico e irresponsável, é uma imagem que gostaríamos que o estrangeiro não tivesse a nosso respeito, mas é também a imagem que temos de nós mesmos.
A suposta frase de De Gaulle, segundo a qual o Brasil não é um país sério, teve o mais surpreendente sucesso entre nós. Qualquer outro país haveria de refutá-la como insulto. Aqui, é comemorada. O que talvez prove que não sejamos sérios mesmo.
Não é bem isso. Um país se torna "sério" quando de alguma forma suas instituições, governos, tradições, refletem a história de sua população. Aqui, tudo parece farsesco porque as classes baixas não se sentem representadas pelo que acontece nos centros de poder.
Claro que nos Estados Unidos o povão pouco participa dos negócios do Congresso ou das estratégias da Casa Branca.
Mas há o mito, e esse mito tem raízes históricas, de uma identidade entre população e instituições. Houve uma revolução nacional em 1776.
Como no Brasil isso não parece ter acontecido, cria-se uma espécie de círculo vicioso. Veja-se o caso Fernando Henrique. Era de esquerda, e seu governo se dedica a baratear o custo da mão-de-obra. "Esqueçam o que eu escrevi": essa frase, que ninguém sabe se FHC disse ou não, tornou-se verdadeira, porque é brasileiríssima.
Cada vez que um governante é pouco popular, ele se torna muito brasileiro. A identidade nacional é estranhamente identificada com a farsa, com a brincadeira, com o "para inglês ver".
E esse "para inglês ver" tem dois sentidos. No primeiro sentido, o inglês é um idiota, a ser enganado por nossa malandragem. No segundo sentido, o inglês é o "sério", o invejavelmente sério, que quando enganamos, os prejudicados somos nós.
A exceção nesse processo foi o suicídio de Getúlio Vargas. Ali havia uma identidade entre governo e "revolução brasileira", rompida tragicamente. Mas o episódio teria sido mais sério se não fosse trágico. Circunscreveu a derrota numa tragédia individual.
A euforia juscelinista, e a euforia de FHC, são coletivas na exata medida em que exibem o Brasil como uma mulata de escola de samba para o investidor japonês.
Claro que a mulata tem bastante a ganhar com isso; mas sua seriedade está mais do que nunca sob suspeita.
Voltemos à festa do Oscar. Claro que aquilo é uma farsa. Christopher Reeve, o Super-Homem em cadeira de rodas, faz um melodrama comovente e tenta provar que Hollywood investe em temas sérios -filmes como "Platoon" e "Filadelfia".
O melodrama é politicamente correto, pois o politicamente correto é que é melodramático, hollywoodiano.
Saímos perdendo dessa farsa. Farsa não de todo ridícula, pois prova que Hollywood, até por razões mercadológicas, não pode esquivar-se às pressões das minorias numa sociedade apesar de tudo democrática e dinâmica como os Estados Unidos.
Mas farsa mesmo assim. Lágrimas de emoção dos premiados. Lágrimas verdadeiras, claro: nada mais lindo do que a explosão de choro de Paul Sorvino, pai da premiada como atriz coadjuvante na madrugada de ontem.
Mas lágrimas falsas, não porque individualmente sejam falsas, mas porque fazem parte do espetáculo. Quase fizemos parte do mesmo espetáculo. Com um filme, insisto, pouco brasileiro, nada problematizador de nossa realidade. Se esse for o preço, espero que não ganhemos nunca o Oscar de melhor filme estrangeiro.

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